Como o conteúdo da própria pergunta do consulente deixa desde logo antever, estamos aqui a falar de uma questão bastante polémica, que proporcionou já «uma das mais acesas discussões em Portugal, levada a cabo, frequentemente, de forma inflamada, pouco reflectida e cientificamente pouco informada, como ficou bem evidenciado quando da publicação do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, vulgarmente conhecido como o Dicionário da Academia, em 2001, que procedeu à introdução na sua nomenclatura de inúmeros empréstimos, propondo em muitos casos o seu aportuguesamento ou o seu decalque» («Neologia de importação no português europeu: desafios e medidas a tomar», organizadoras: Margarita Correia e Ana Mineiro, 2004, p. 33).
Não é, portanto, fácil chegarmos a conclusões definitivas. Por outro lado, compreenderá certamente o prezado consulente que não será este o espaço mais adequado para levar a cabo reflexões de tão lato escopo.
Em primeiro lugar, será necessário percebermos exactamente do que é que estamos a aqui a falar, isto é, o que são estrangeirismos? Grosso modo, podemos dizer que são, de acordo com a «Apresentação detalhada» do Dicionário de Estrangeirismos, em linha no Portal da Língua Portuguesa, «palavras provenientes de outras línguas, como é o caso de aftershave, picnic ou ghetto. Estas palavras, a que se chama estrangeirismos, têm este nome por serem provenientes de outras línguas e serem escritas de acordo com a ortografia da sua língua de origem, em desacordo, num ou em vários aspetos, com a grafia, a morfologia ou a relação entre grafia e pronúncia do português». Ainda de acordo com o texto introdutório do referido dicionário, «Os estrangeirismos são geralmente introduzidos na língua ao mesmo tempo que um conceito novo (por exemplo, bungee-jumping) ou pertencente a outra cultura (como é o caso de reggae) chega a um país de língua portuguesa. Se o uso for suficientemente frequente e duradouro, é comum o aparecimento de um termo ou expressão equivalente (como rato, "dispositivo informático", para mouse), ou a adaptação à escrita e à pronúncia do português — como aconteceu, entre muitos outros casos, com líder e futebol».
Porém, como Tiago Freitas, Maria Celeste Ramilo e Elisabete Soalheiro, investigadores do Instituto de Linguística Teórica e Computacional, bem salientam no artigo «O processo de integração dos estrangeirismos no português europeu», a própria definição do termo em análise não é pacífica nem consensual, existindo até alguma confusão entre conceitos como empréstimo, estrangeirismo e importação. Autores como António Lavouras Lopes e Ana Rebello d’Andrade, por exemplo, em «Primeira fase da instalação do estrangeirismo», in Actas do XIII Encontro da APL. Colibri, Lisboa, 1997, consideram mesmo a existência de quatro fases no processo de integração de uma palavra estrangeira. De acordo com essas quatro fases, as palavras recebem progressivamente as seguintes designações: estrangeirismo, peregrinismo, neologismo de importação e empréstimo.
Penso, no entanto, um pouco até na linha do defendido por Tiago Freitas e outros, que, como forma de facilitação da comunicação (sobretudo num espaço como este), «a designação estrangeirismo (ou palavra estrangeira) [...] é aquela que [...] parece mais transparente e intuitiva», ainda que, como também bem sublinham os referidos investigadores, exista, associada a esta palavra, «uma certa carga depreciativa [...]. Esta carga [...] resulta, sem dúvida, de ser muitas vezes esse o termo escolhido pelos prescritores portugueses nas suas diatribes contra a invasão de termos de outras línguas». Deste modo, parece-me bastante equilibrada a definição proposta na introdução do Dicionário de Estrangeirismos, já aqui transcrita.
Dito isto, e respondendo directamente a uma das questões formuladas pelo consulente, facilmente chegamos à conclusão de que a opinião dos gramáticos sobre o uso e difusão dos estrangeirismos não é, portanto, convergente, ainda que, pelo menos em Portugal, me pareça que a tendência seja para um cada vez maior afastamento das teorias mais extremistas no que diz respeito ao purismo linguístico. Repare-se, por exemplo, que, no princípio do século XX, os filólogos Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (Ortografia Nacional. Simplificação e Uniformização Sistemática das Ortografias Portuguesas, Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso: 1904) e José Leite de Vasconcelos (Opúsculos — volume I: «Filologia», 1928, ), citados por António J. Lavouras Lopes (in Margarita Correia e Ana Mineiro, op. cit.), defendiam o imediato aportuguesamento ou erradicação de «palavras estrangeiras», que «devem revestir feições nacionais, ou ser de todo desterradas da linguagem e escrita usuais, e pena é que até já em documentos oficiais figurem». Seguindo este fio de raciocínio, chegam mesmo os citados filólogos a associar os agora chamados estrangeirismos à «falta de dignidade», considerando «patriotas os que os censuram [os estrangeirismos]».
Muita coisa mudou num século, nomeadamente porque vivemos «num mundo cada vez mais globalizado, em que as fronteiras se esbatem e a livre circulação de pessoas e bens se assume como uma realidade em constante ampliação» (intervenção de Almerinda Evangelista e Gonçalo Nuno Ferreira, in Margarita Correia e Ana Mineiro, op. cit., p. 44). Neste sentido, a «eficácia da comunicação, através de códigos comuns, é uma necessidade premente e estruturante do nosso quotidiano. Ao actuar como um facilitador, uma linguagem sem ambiguidades permite uma melhor interacção entre vários grupos de pessoas, entre diferentes países, ou mesmo dentro da sua própria comunidade linguística» (intervenção de António J. Lavouras Lopes, in Margarita Correia e Ana Mineiro, op. cit., p. 49). Note-se, no entanto, que, por exemplo, em Espanha, uma já muito velha tradição, ratificada, digamos assim, por uma regra da Real Academia Espanhola, aconselha a que todos os nomes estrangeiros sejam adaptados para a língua espanhola, de acordo com o seu equivalente, no caso de este ser possível. Ex.: Carlos Dickens (Charles Dickens), ou Juan Jacobo Rousseau (Jean-Jacques Rousseau); por outro lado, será talvez pertinente recuperar esta abertura do Ciberdúvidas, que nos dá conta de algumas reacções institucionais (França, Espanha, Brasil) contra os estrangeirismos.
Outra questão que valerá de facto a pena aqui abordar será a da necessidade da existência ou não de uma política de regulação da entrada, nas línguas, de estrangeirismos. Confrontados directamente, no contexto de uma mesa-redonda, com esta pergunta (Margarita Correia e Ana Mineiro, op. cit.), vários linguistas portugueses e estrangeiros, de reconhecida craveira, são unânimes em afirmar que sim. António J. Lavouras Lopes chega mesmo a afirmar que, apesar dessa evidente necessidade, a verdade é que «A política da língua sobre a neologia de importação não existe. Os instrumentos normalizadores — gramáticas e dicionários — revelam-no, pelas incoerências, hesitações e omissões que os caracterizam. As duas gramáticas portuguesas de referência publicadas nos finais do século XX, que têm a assinatura de eminentes linguistas como Lindley Cintra e Maria Helena Mateus, passam por cima desta matéria. A primeira, a Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mateus [...], não contém, na sua estrutura, espaço para a importação linguística. A segunda, a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1984), destinada a um público alargado, incluindo o escolar, também não contempla a importação linguística».
No que diz respeito à tão propalada tendência imperialista norte-americana, direi o seguinte: pessoalmente, não alinho com esse tipo de análise, de cariz algo conspirativo, pois, desse ponto de vista, os próprios falantes ingleses teriam exactamente as mesmas razões de queixa que têm todos os outros. Seguindo esta linha de raciocínio, o linguista David Crystal, numa entrevista de 2007 dada à revista brasileira Veja, refere justamente que «o fato básico é que todas as línguas tomam empréstimos das outras. Ao longo dos últimos 1000 anos, o inglês incorporou palavras de mais de 350 línguas. Só 20% das palavras do inglês atual remontam às origens anglo-saxônicas e germânicas da língua. Essa incorporação de palavras tornou o inglês uma língua expressiva e rica. Shakespeare não poderia escrever o que escreveu se não contasse com um vocabulário que era germânico, francês e latino». O referido professor universitário vai ainda mais longe, considerando que o inglês não representa, de forma alguma, uma ameaça ao português, pois essas mesmas palavras inglesas entram na nossa língua «não para destruí-la, mas para permitir novas oportunidades de expressão. Se cada palavra que entra no português apagasse uma palavra anterior, isso seria de fato um fenômeno estranho e indesejável. Mas não é assim que funciona. A nova palavra não substitui palavras preexistentes, ela passa a vigorar ao lado delas. A língua evolui desse modo e alcança uma gama expressiva mais ampla». Sinceramente, parece-me assaz interessante esta perspectiva e até bastante encorajadora. Aliás, numa outra entrevista, de 2006, David Crystal acaba por abordar este tópico do domínio da língua inglesa numa perspectiva inversa à que é comummente veiculada, isto é, toda a gente se preocupa com a potencial influência nefasta do inglês noutras línguas, mas quase ninguém pensa na mais que previsível descaracterização que a língua inglesa pode sofrer quando «o número de pessoas que aprendem inglês como segunda língua superar o dos que aprendem inglês como língua materna».
Enfim, para concluirmos, que já vai longa a presente resposta, penso que o recurso a estrangeirismos, independentemente da existência ou não de instrumentos que o regulem, deverá essencialmente ser sustentado no bom senso — e até na intuição — dos falantes, não havendo, do meu ponto de vista, nenhuma razão válida para ser encarado como um drama, pois não me parece que, se forem respeitados certos limites, chegue ao ponto de empobrecer ou destruir uma língua. Como é referido na equilibrada introdução ao Dicionário de Estrangeirismos, no Portal da Língua Portuguesa, será também importante termos consciência de que, «muitas vezes, o uso de estrangeirismos é aparentemente desnecessário, dada a existência prévia de palavras equivalentes em português, como parece suceder com ranking (equivalente a classificação). A adoção de palavras estrangeiras sucede frequentemente através do vocabulário de um domínio de especialidade ou de um grupo social específico. Com o tempo, alguns estrangeirismos passam a ter uma alternativa em português, quer seja esta um equivalente (decalque semântico), como no caso de correio eletrónico para e-mail, quer seja um aportuguesamento (ou seja, uma forma adaptada a nível ortográfico, ou morfológico, ou mesmo semântico), como é o caso de suflé, proveniente do francês soufflé».
Na edição de 17 de Março da Quadratura do Círculo, no canal de televisão português SIC Notícias, o comentador José Pacheco Pereira terminou a sua intervenção, no referido programa, com a seguinte punchline: «Ele [o sr. presidente da República] não pode ser um moderador soft; ele tem de ser um moderador hard.» Ora, esta já me parece ser uma utilização algo descontextualizada e até um tanto ou quanto abusiva de termos ingleses, pois poderia perfeitamente ter usado, visto que a língua portuguesa tem, para tais conceitos, termos próprios, por exemplo: «Ele não pode ser um moderador suave; ele tem de ser um moderador duro.» No entanto, pareceu provavelmente ao famoso historiador que, naquele contexto concreto, os estrangeirismos utilizados seriam portadores de uma força e dinâmica que os vocábulos portugueses talvez não tivessem. Mas este é ainda um outro aspecto interessante desta polémica área de análise, isto é, o facto de sentirmos, por vezes, que certos vocábulos estrangeiros podem transmitir, de forma mais certeira e precisa, determinados conceitos ou ideias. Confesso que, pessoalmente, sinto de forma muito marcada este aspecto, por exemplo, com a palavra inglesa background: parece-me muito mais abrangente e preenchido do que, por exemplo, os vocábulos portugueses «origens», «raízes» ou «antecedentes».
Como vê o nosso prezado consulente, são múltiplas as perspectivas e os ângulos de abordagem que podemos ter sobre esta sempre pertinente, mas polémica, questão. Espero, de alguma forma, ter ajudado com as pistas de análise que por aqui tentei espalhar.