DÚVIDAS

A história da expressão de realce é que (II)

Para a pergunta «é que», deparei com a seguinte resposta do Ciberdúvidas:

«Rodrigo de Sá Nogueira, no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem (Livraria Clássica Editora, Portugal), explica esse é que (ou foi que) por imitação do francês "c'est que…". E não lhe via, já nesse tempo, qualquer deselegância gramatical . Antes pelo contrário: "Trata-se de uma expressão radicada, consagrada pelo uso, e, diga-se de passagem, de muita expressividade." À luz da gramática portuguesa, R. Sá Nogueira justifica este tipo de construção como uma frase elíptica, que dá força e realce a uma determinada ideia ou informação. No exemplo apontado, a frase seria assim: "A escola recuou na sua proposta. Porque (é que) faltam os fundos necessários." E remete-nos para o que escreveu sobre o mesmo assunto o insuspeito Vasco Botelho de Amaral. Vem no Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Editorial Domingos Barreira, Porto, esgotadíssimo) e é a defesa mais acalorada que conheço da "espontaneidade e relevo expressivo" da partícula é que – um recurso estilístico comum, de resto, em clássicos como Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, ou Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro. A transposição da oralidade – propositada, por exemplo, no jornalismo radiofónico e de TV – para uma linguagem escorreita é que, algumas vezes, deixa muito a desejar…»

A minha dúvida recai sobre a explicação que dá para é que Epiphânio Dias na sua Syntaxe Histórica Portuguesa. Com base nela, é que resultaria da perda de concordância do verbo seguido do antecedente demonstrativo o acompanhado de oração relativa introduzida pela conjunção que: «Eu sou o que sei.», «Eu é que sei.»

Quem estaria com a razão, Epiphânio Dias ou Sá Nogueira?

Cumprimentos

Resposta

Em matéria de variação e mudança linguísticas, nem sempre é possível atribuir claramente a causa de um fenómeno a outro, sobretudo quando se trata de uma influência externa à língua que se descreve. Por outro lado, do ponto de vista da doutrina normativa sobre formas que no transcurso dos anos se gramaticalizaram – caso da expressão de realce «é que» –, pode revelar-se um tanto ocioso tomar partido.

O certo é, em português antigo, já havia contextos sintáticos que favoreciam a gramaticalização1 de é que, como Epifânio da Silva Dias (1941-1916) aponta na seguinte passagem da sua Syntaxe Histórica Portuguesa (Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1918, pp. 317/318)1:

«§ 428. a) Para realçar um sujeito ou complemento directo, assignalando-o como sendo a unica pessoa ou cousa a que o predicado se applica, pode desdobrar-se a oração em duas, por meio do verbo ser com o pronome demonstrativo o (no português archaico aquelle), seguido de uma oração relativa (e com o pronome quem equivalente a aquelle que):

o coraçom viel he aquell que faz homem sseer pera pouco (Fabulas fab. 22). A natureza a todos os homens fez eguaes; a fortuna he a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos quaes são os servos (Vieira, IV, 323). as taças que gyravam ao redor eram as que produziam o tinir que soava fora (Herculano, Eurico, 195). [...]

Obs. Neste desdobramento, o presente do verbo ser pode estar em lugar dos outros tempos:

Pilatos he o que havia de fazer asco de vós (Vieira, IX, 74, ap. Blut.).

O português moderno também abrevia a phrase, supprimindo o pronome o.

b) Este desdobramento simplificado da maneira acabada de indicar passou, no português médio e moderno, a applicar-se a qualquer parte de uma oração, que determine o predicado, tornando-se apenas um signal de realce:

Dahi he que lhe vem toda a graça, e toda a fermosura (Vieira, 71, 15). Agora he que tinhão melhor lugar os desmayos da Esposa (Id., VII, 46).

Obs. Quando a determinação designa lugar, pode substituir-se que por onde:

era principalmente nas fileiras dos árabes, onde as púas agudas e cortadoras da sua temerosa borda ou maça d'armas faziam maiores estragos (Herc, Eur., 118).

Obs. O português moderno chega a empregar é (era, etc.) que – invariável, depois do que havia de ser sujeito da oração, v. g.: os grandes rebanhos é que [por: são os que, ou ainda: são que] fazem as boas colheitas, proporcionando as quantidades precisas do estrume para o adubo do solo (Rebello da Silva, Economia rural); as multidões é que ficarão tristes (Herculano, Lendas e Narrativas, II, 198).»

Note-se, porém, que não é de excluir que o contacto com a construção francesa «c'est que...»3 tenha reforçado e favorecido as construções de realce (foco), com destaque para «é que». Contudo, é evidente que os textos de António Vieira (1608-1697), que viveu numa época em que o impacto da cultura e da língua francesas anda não se faziam sentir em Portugal, atestam usos de é que iguais aos de hoje; e, sendo assim, Epifânio da Silva Dias pode muito bem ter mostrado, afinal, que a expressão em causa não tem origem no francês. Mas, sobre este ponto, convém manter alguma prudência e aceitar que na gramaticalização de é que se deu a convergência de duas tendências, uma interna, como os exemplos de Vieira ilustram, e outra externa, por pressão do francês.

Resta acrescentar que é que é hoje também uma locução de função explicativa, que Silva Dias não desconhecia e não deixou de descrever:

«§ 385. a) Em lugar de porque, pode empregar-se simplesmente que: [...] 2) na locução é (era, etc.) que (= acontece assim porque), quando serve de introduzir a exemplificação da existência do um facto:

Era que nessas palavras divinas havia uma poesia celeste, a qual as almas rudes mas virgens do septentrião sentiam casar-se com as suas primitivas virtudes (Herculano, Eurico, 34, 35).»

 

1 Por gramaticalização entende-se «[o] processo de mudança linguística pelo qual uma palavra muda de estatuto morfológico: deixa de ser uma palavra lexical e torna-se uma palavra ou morfema funcional ou gramatical» (Dicionário Terminológico). A gramaticalização também pode afetar sintagmas (em boa hora > embora) ou sequências de palavras, como é o caso da expressão é que.

2 Mantém-se a ortografia e a pontuação originais e desenvolvem-se as abreviaturas. Nas abonações, as abreviaturas entre parênteses referem-se a autores ou a obras. Sublinhados nossos.

3 Um exemplo desta construção francesa: «Ce qui s'est passé, c'est que j'ai réussi très tôt à expliquer à ma famille que je n'allais pas pouvoir les appeler tous les jours parce que les factures de téléphone étaient trop élevées.» (= «O que me aconteceu foi que, bem cedo, fui capaz de dizer à minha família, no meu país, que não iria poder telefonar-lhes todos os dias, porque as contas de telefone são altas.», in Linguee).

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