Em matéria de variação e mudança linguísticas, nem sempre é possível atribuir claramente a causa de um fenómeno a outro, sobretudo quando se trata de uma influência externa à língua que se descreve. Por outro lado, do ponto de vista da doutrina normativa sobre formas que no transcurso dos anos se gramaticalizaram – caso da expressão de realce «é que» –, pode revelar-se um tanto ocioso tomar partido.
O certo é, em português antigo, já havia contextos sintáticos que favoreciam a gramaticalização1 de é que, como Epifânio da Silva Dias (1941-1916) aponta na seguinte passagem da sua Syntaxe Histórica Portuguesa (Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1918, pp. 317/318)1:
«§ 428. a) Para realçar um sujeito ou complemento directo, assignalando-o como sendo a unica pessoa ou cousa a que o predicado se applica, pode desdobrar-se a oração em duas, por meio do verbo ser com o pronome demonstrativo o (no português archaico aquelle), seguido de uma oração relativa (e com o pronome quem equivalente a aquelle que):
o coraçom viel he aquell que faz homem sseer pera pouco (Fabulas fab. 22). A natureza a todos os homens fez eguaes; a fortuna he a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos quaes são os servos (Vieira, IV, 323). as taças que gyravam ao redor eram as que produziam o tinir que soava fora (Herculano, Eurico, 195). [...]
Obs. Neste desdobramento, o presente do verbo ser pode estar em lugar dos outros tempos:
Pilatos he o que havia de fazer asco de vós (Vieira, IX, 74, ap. Blut.).
O português moderno também abrevia a phrase, supprimindo o pronome o.
b) Este desdobramento simplificado da maneira acabada de indicar passou, no português médio e moderno, a applicar-se a qualquer parte de uma oração, que determine o predicado, tornando-se apenas um signal de realce:
Dahi he que lhe vem toda a graça, e toda a fermosura (Vieira, 71, 15). Agora he que tinhão melhor lugar os desmayos da Esposa (Id., VII, 46).
Obs. Quando a determinação designa lugar, pode substituir-se que por onde:
era principalmente nas fileiras dos árabes, onde as púas agudas e cortadoras da sua temerosa borda ou maça d'armas faziam maiores estragos (Herc, Eur., 118).
Obs. O português moderno chega a empregar é (era, etc.) que – invariável, depois do que havia de ser sujeito da oração, v. g.: os grandes rebanhos é que [por: são os que, ou ainda: são que] fazem as boas colheitas, proporcionando as quantidades precisas do estrume para o adubo do solo (Rebello da Silva, Economia rural); as multidões é que ficarão tristes (Herculano, Lendas e Narrativas, II, 198).»
Note-se, porém, que não é de excluir que o contacto com a construção francesa «c'est que...»3 tenha reforçado e favorecido as construções de realce (foco), com destaque para «é que». Contudo, é evidente que os textos de António Vieira (1608-1697), que viveu numa época em que o impacto da cultura e da língua francesas anda não se faziam sentir em Portugal, atestam usos de é que iguais aos de hoje; e, sendo assim, Epifânio da Silva Dias pode muito bem ter mostrado, afinal, que a expressão em causa não tem origem no francês. Mas, sobre este ponto, convém manter alguma prudência e aceitar que na gramaticalização de é que se deu a convergência de duas tendências, uma interna, como os exemplos de Vieira ilustram, e outra externa, por pressão do francês.
Resta acrescentar que é que é hoje também uma locução de função explicativa, que Silva Dias não desconhecia e não deixou de descrever:
«§ 385. a) Em lugar de porque, pode empregar-se simplesmente que: [...] 2) na locução é (era, etc.) que (= acontece assim porque), quando serve de introduzir a exemplificação da existência do um facto:
Era que nessas palavras divinas havia uma poesia celeste, a qual as almas rudes mas virgens do septentrião sentiam casar-se com as suas primitivas virtudes (Herculano, Eurico, 34, 35).»
1 Por gramaticalização entende-se «[o] processo de mudança linguística pelo qual uma palavra muda de estatuto morfológico: deixa de ser uma palavra lexical e torna-se uma palavra ou morfema funcional ou gramatical» (Dicionário Terminológico). A gramaticalização também pode afetar sintagmas (em boa hora > embora) ou sequências de palavras, como é o caso da expressão é que.
2 Mantém-se a ortografia e a pontuação originais e desenvolvem-se as abreviaturas. Nas abonações, as abreviaturas entre parênteses referem-se a autores ou a obras. Sublinhados nossos.
3 Um exemplo desta construção francesa: «Ce qui s'est passé, c'est que j'ai réussi très tôt à expliquer à ma famille que je n'allais pas pouvoir les appeler tous les jours parce que les factures de téléphone étaient trop élevées.» (= «O que me aconteceu foi que, bem cedo, fui capaz de dizer à minha família, no meu país, que não iria poder telefonar-lhes todos os dias, porque as contas de telefone são altas.», in Linguee).