« (...) Dêem-me um jornal onde se use hoje uma voz perifrástica ou tão-só um tempo composto e onde o mais-que-perfeito não tenha sido soterrado sob o pau para toda a obra do perfeito simples... )»
Segundo o Correio da Manhã (CM), Humberto Delgado teria ontem feito 100 anos «se não tivesse sido morto pelo regime que apoiou e mais tarde tentou derrubar». Também decerto Assurbanipal haveria de fazer um dia destes 2633 anos se não tivesse sido envenenado. Não sei de que fiáveis informações disporá o CM acerca da secular expectativa de vida do general, mas temo que não sejam mais dos que as do autor da notícia acerca da volatilidade da língua e do detestável hábito que as palavras têm de pôr-se a falar sozinhas, arrastando divertidamente pelo nariz aqueles incapazes de se fazer respeitar por elas.
Os jornais abundam hoje em frases descasadas e em erros de ortografia (dos de sintaxe melhor é nem falar). Os velhos revisores foram-se e as redacções encheram-se de jovens produtos do sistema de ensino. O resultado foi catastrófico. Dêem-me um jornal onde se use hoje uma voz perifrástica ou tão-só um tempo composto e onde o mais-que-perfeito não tenha sido soterrado sob o pau para toda a obra do perfeito simples. Curiosamente, é às vezes gente que tem por profissão escrever em português e escreve incompetentemente em português quem mais exige políticos competentes, médicos competentes, magistrados conhecedores e competentes…
Cf. ‘À muito tempo que não te via’, ‘hades’ cá vir. Estamos a dar mais erros de português?
Crónica do jornalista, poeta e escritor Manuel António Pina (1943 – 2012), transcrita, com a devida vénia, do Jornal de Notícias de 23 de novembro de 2006. Escrita segundo a norma ortográfica de 1945.