«A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada...»
Manuel Bandeira, Libertinagem,
Evocação do Recife, 1925
Acabei de assistir ao documentário “Língua – Vidas em Português”, do moçambicano Victor Lopes, que é uma comovente homenagem à língua portuguesa. Passa-se em Portugal, Goa (Índia), Japão, Moçambique, Angola e no Rio. Onde cada um fala o português que quer, de tal forma que não se pode dizer que haja uma língua portuguesa, mas diversas maneiras de falar a língua portuguesa, como observa José Saramago, diante do rio Tejo. O depoimento de Martinho da Vila, em Duas Barras, interior do Estado do Rio, traça a linha reta que une a língua portuguesa (e a musica) do negro brasileiro ao negro africano. Martinho diz que poderia viver em Moçambique, em Angola, ou na Ilha do Sal e se sentir tão bem quanto em Duas Barras, onde vivia com o pai, colono de uma fazenda falida de café.
O depoimento de João Ubaldo Ribeiro chama a atenção para a nova mania de se macaquear a sintaxe do inglês que se fala nos Estados Unidos. A freqüência com que se fala “eu vou ir” (“I will go”) em lugar de “eu vou”. O uso nefando do gerúndio, um tempo verbal que os americanos usam sempre e que em português (e em espanhol) só faz enfraquecer e tornar imprecisa a frase.
Acabei de ler no excelente jornal argentino "Clarin" (14/11/04) uma entrevista com Pedro Barcia, presidente da Academia Argentina de Letras, sobre os perigos que rondam a língua espanhola na Internet: “El chateo estimula un idioma cada vez más pobre, limitado y amputado”. O “chateo”, é claro, é a língua dos que participam dos chats na Internet. É óbvio que o mesmo perigo ronda a língua portuguesa. Segundo Barcia, um adolescente não precisa de mais que 200 palavras para viver na Internet – o que, evidentemente, não basta para enfrentar a vida. E muito menos para desfrutar do enorme prazer que é banhar-se na língua espanhola – e na língua portuguesa.
No filme de Victor Lopes, Saramago lembra que os primeiros homens se comunicavam com grunhidos e gemidos. E conseguiam se comunicar, tanto que chegamos até aqui. Uma das vitórias da civilização foi exatamente construir línguas e administrar as palavras e as frases – cada língua com a sua sintaxe. Mas, pelo andar da carruagem, as línguas de hoje acabam mais próximas do grunhido do que de Manuel Bandeira, do inicio do século passado.
Eu, de minha parte, tenho uma birra especial com o que chamo de “a sintaxe do muro”, ou “a sintaxe ideal para não sair de cima do muro, aconteça o que acontecer”.
O meu amigo José Simão, sábio pós-socrático, criou, como se sabe pelo menos em São Paulo, o “Dicionário Tucanês”, ou seja, a tentativa de não explicar ao explicar.
Simão, na verdade, percebeu que estava em curso no Brasil uma tentativa análoga à do regime totalitário do Big Brother, no livro “1984”, de George Orwell, que se utilizava do “newspeak”: uma linguagem de propaganda com a função de “diminuir o alcance do pensamento” – através do eufemismo, do circunlóquio e da inversão dos significados habituais das palavras. Segundo o “newspeak”, a expressão “pensar certo” tinha o mesmo significado de “pensar de acordo com as idéias predominantes”.
Quem sou eu para tentar me aproximar de George Orwell , José Simão ou João Ubaldo. Meu objetivo é muito mais corriqueiro. É tentar fazer com que a língua portuguesa que se emprega na televisão – nos programas onde trabalho, bem entendido – “saia de cima do muro” e trate de chamar as coisas pelo nome. Para facilitar a vida do tele-espectador. E em respeito à magnífica língua portuguesa. Assim é que periodicamente distribuo aos meus colegas esse manual que se segue.
(Rápido esclarecimento: “cabeça” é o que o apresentador lê, ao vivo, antes da reportagem, em vídeo. “Off” é o texto lido sobre as imagens, em que o apresentador não aparece.)
O emprego do gerúndio, da voz passiva; a tentativa de esconder o sujeito; e, sobretudo, o horror ao tempo infinitivo, o tempo da ação – todas essas são manifestações de uma “sintaxe do muro”. O medo de ser claro, para poder recuar e “dizer que não disse”.
Também não tenho a pretensão de explicar por que se fala assim na televisão. Fica para um discípulo de Sergio Buarque de Holanda. Ou, quem sabe, para o Martinho da Vila. Eu, de minha parte, quando sou possuído pelo sentimento de que tudo está perdido, de que a barbárie derrotou a civilização, corro celeremente para Camões, Machado – e Manuel Bandeira.
6654Ensino do Português2005-03-19Sobre o Português e a Matemática
no Ensino Básico em Portugal
Como referíamos na nossa Abertura Inglês “versus” Português no Ensino Básico de Portugal, do passado dia 18, em Portugal, os alunos do 5.º e 6.º anos de escolaridade podem transitar do 2.º ciclo do Ensino Básico com negativa a Português (e a Matemática). Contra esta medida, numa renovada proposta do Ministério da Educação português, se insurge a professora Maria do Carmo Vieira. Este artigo foi publicado inicialmente no "Jornal de Letras", de 17 de Março de 2005.
Tenhamos a ousadia de dizer Basta! a um Ministério, e seus diversos colaboradores, que continuamente atentam contra a nossa inteligência e a nossa sensibilidade, impondo, incessantemente impondo, sem que surja uma reacção conjunta, eficiente e subversiva, e digo bem, subversiva, da nossa parte. As quatro situações que passaremos a descrever, segundo uma ordem cronológica, são disso um exemplo:
1. No ano lectivo de 2003-2004, começou a implementação da nova reforma curricular, e foco o caso da disciplina de Português do secundário, por ser a área que lecciono. Na base de pedagogias defensoras do «lúdico nas aulas» e do «respeito pelo discurso que os alunos trazem de casa», a importância da Literatura foi posta em causa, atribuindo-se-lhe a culpa pela incapacidade dos alunos em ler, interpretar, expor ou escrever correctamente no 10. º ano e anos seguintes. Exigiu-se a substituição da disciplina de Português pela de Língua Portuguesa, apresentando-se inexplicavelmente a Literatura divorciada da Língua e em pé de igualdade com os textos dos media e os de carácter informativo. Decorrente do espírito dos programas, podemos encontrar por exemplo, num manual do 10.º ano, uma entrevista de Herman José, «transcrita a partir da versão filmada exibida na RTP1», com erros vários, naturalmente, dirão os autores, para estimular uma mais profunda reflexão sobre a língua. Nela podemos ler «(...) a menos que, se a senhora quiser, eu posso-lhe fazer uma coisa (...) ou «a gente temos que ser uns para os outros...». Após a sua leitura, propõe-se aos alunos que «simulem uma entrevista». Em nome do lúdico substitui-se a qualidade pela mediocridade linguística. Casos semelhantes encontramos em diferentes manuais: estratégias de trabalho completamente aberrantes ou propostas televisivas de uma inegável má qualidade.
2.No presente ano lectivo, 2004-2005, pôs-se em prática o novo programa de Língua Portuguesa para o 11. º ano e de novo vimos surgir a literatura, nomeadamente a poesia de Cesário Verde, como um item, entre outros, de uma tipologia de texto. A literatura perdeu o seu lugar de relevância cultural, igualando-se a textos menores e assim podemos ler numa manual a seguinte sequência programática: Editorial, Poesia de Cesário Verde, Publicidade, Reclamação, Artigo Crítico. Noutros sumaria-se a poesia do poeta como Cidadania e Romance do Quotidiano 2 ou O Quotidiano em Cesário Verde e nos Textos dos Média (o acento nesta última palavra não é descuido nosso).
Perante esta falta de amor pela arte, ocorre-nos a carta escrita por Cesário Verde ao seu amigo Silva Pinto, dando conta da sua mágoa, por não ser reconhecido como poeta: Ora, meu querido amigo, o que eu te peço é que, conversando com o Doutor Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde, empregado no comércio. Eu não posso bem explicar-te; mas a tua amizade compreende os meus escrúpulos: sim?...
3. Quando em 2003-2004, a nova reforma se aplicou também ao Ensino Básico, no caso, 3. º Ciclo, impondo um número exorbitante de disciplinas – 15 (quinze)- murmurámos um protesto, lastimando, sem consequências, que os nossos alunos suportassem tal carga horária. Esta alteração tanto mais nos surpreendeu, quanto surgia dos que intransigentemente defendiam o «ensino pedagogicamente correcto», o «lúdico» nas aulas e o «respeito pelo discurso dos alunos». Poderá haver maior contradição? Tenho diante de mim horários vários dos 7.º e 8. º anos e passarei a enumerar as 15 disciplinas, para que possam também contá-las e verificar que não me enganei: Português, História, Matemática, Francês, Inglês, Físico-Química, Ciências da Natureza, Educação Visual, Educação Física, Geografia, Área Projecto (A.P.), Educação Tecnológica (E.T.), Educação Musical (E.M.), Estudo Acompanhado (E.A.) e Formação Cívica (F.C.). Observando os horários, concluímos que os alunos possuem apenas uma única manhã ou tarde livres, vários furos entre as aulas da manhã e as da tarde, variando o número de aulas por dia entre 5 (cinco) e 8 (oito), sendo este último número o que predomina. Será isto pedagógico?
Ainda recentemente, assistimos a uma lastimável brincadeira, pensada por adultos, um psicólogo e um pediatra, que não se deram certamente conta do seu gesto demagógico e manipulador quando instigaram crianças e adolescentes a uma greve contra os trabalhos de casa, estratégia imprescindível em qualquer aprendizagem.
Deveriam ter-se insurgido com seriedade, e em defesa da saúde mental e física dos alunos, não só contra este excesso de sobrecarga horária, mas também contra o excesso de peso resultante do número de livros, do seu tamanho e da sua espessura, ou contra a má qualidade da alimentação que é oferecida nos bares e nas cantinas das Escolas. Teria sido um gesto bem mais cívico.
4. Recentemente, surgiu uma nova imposição, que põe a nu a falta de senso e as contradições do Ministério da Educação, publicamente defensor da importância do ensino do Português e da Matemática, admitindo, no entanto, no despacho normativo nº 1/2005, chegado há pouco às escolas, a passagem de ano com negativas nas referidas disciplinas. Transcrevemos os pontos 58 e 59 para que melhor possam verificar a incoerência do Ministério da Educação: No final do 2. º ciclo, e no âmbito da avaliação sumativa, o conselho de turma pode decidir a progressão de um aluno que não desenvolveu as competências essenciais, quando este: a) Tenha obtido classificação inferior a 3 nas disciplinas de Língua Portuguesa e de Matemática; (58). A decisão referida no número anterior tem de ser tomada por unanimidade. Caso não exista unanimidade, deve proceder-se a nova reunião do conselho de turma, na qual a decisão de progressão, devidamente fundamentada, deve ser tomada por dois terços dos professores que integram o conselho de turma (59).
Continuamos a resistir sem chama, sem empenhamento e sem profissionalismo, «dando a volta» a programas e manuais, ou deixando as nossas críticas fechadas e esquecidas em actas de reuniões de grupo, a propósito de alguns despachos ministeriais, quando a gravidade das situações apresentadas nos exigia, em uníssono, a DESOBEDIÊNCIA.7159Observatório de Imprensa2005-03-16Português assassinado
a tecladas
Na era dos insensatos, eis que surge mais um besteirol, a que os apressados de sempre já deram até nome: idioma cibernético.
Recapitulemos, pois a memória não é o forte de nosso povo. O rádio parecia dispensar a alfabetização. Tudo poderia ser ensinado exclusivamente pela fala. A década de 1920 prometia resolver o grande impasse: para quê ensinar a ler e a escrever? Bastava usufruir dos benefícios do Marquês de Pombal, que nem sequer era citado, pois em país católico como o nosso, como reconhecer mérito a estadista que expulsara daqui os jesuítas, professores de nossas primeiras escolas? Mas foi ele o principal responsável por termos uma língua que cobre todo o território nacional, ensejando-nos avisar o distinto público que dia tal haverá vacina.
Depois veio a televisão. Daí, sim, era a pá de cal. As verbas para o ensino deveriam ser diminuídas ainda mais, pois era possível aprender e ensinar pela televisão. Os governos deveriam investir em televisão, como de fato o fizeram, e não em escolas!
E no auge da hegemonia da televisão, veio outro Plano Marshall. O sociólogo canadense Herbert Marshall McLuhan, falecido em 1981, aos 70 anos, celebrizou-se ao anunciar o fim do livro. Que meio usou para divulgar a sua profecia? Um livro!
Para quê?
A conquista seguinte foi a internet. A Humanidade encheu-se de navegadores nos mares da rede mundial, invento tecnológico concebido para o caso de uma guerra nuclear, então uma ameaça ainda mais aterradora do que podemos supor. Cessada a Guerra Fria, porém, virou brinquedinho e instrumento dos que podem ter acesso a uma linha telefônica e a um provedor, mais ou menos 10% da Humanidade.
O último que passou na escalada foi o telefone celular, que, como sabemos, ainda é usado também para falar, mas essa função primordial foi rebaixada: celular é para tirar fotos, gravar conversar e, principalmente, enviar torpedos. Em resumo, nunca as pessoas escreveram tanto!
Surgiu, porém, um problema. O carro estava diante dos bois. Os pequenos burgueses tinham internet e celular, mas não dominavam a língua escrita. E por isso criaram a deles. Nada espantoso. Também os habitantes das periferias não dominam a norma culta da língua e criam suas gírias, devidamente circunscritas a cada grupo de usuários. Assim, dois traficantes conversam num bar carioca e o policial ao lado não sabe de que estão falando, o que estão combinando.
Mas eis que, abruptamente, irrompeu nas legendas da rede Telecine, nas TVs a cabo Net e Sky, o Cyber Movie, em que as legendas dos filmes são escritas na mesma pobreza vocabular e desarrumação comum aos ágrafos que se beneficiaram das novas tecnologias.
Para eles, vale o que todo mundo vê na televisão: a tecnologia vai bem – alta definição de cores, som estereofônico, cenários exemplares etc – tudo muito bonito, mas para quê? Para aqueles programas? A tecnologia andou bem e rapidamente. A escrita ficou para trás, pois a escola foi abandonada.
Glossário mínimo
O que não se pode entender é que respeitados intelectuais considerem normal o que está ocorrendo: equivale a ir ao médico, este constatar disfunção em órgão essencial e diagnosticar: ah, está indo ao banheiro mais vezes do que deveria? Altere seu cronograma diário e adapte-se às novas exigências de seu organismo, que acaba de entrar na era pós-moderna, a era do vale-tudo. Agora, as visitas ao banheiro serão de hora em hora.
Pois na dita linguagem cibernética a língua portuguesa está sofrendo de diarréia e tenesmo ao mesmo tempo. Ora o jovem diz demais e confusamente, economizando em letras, mas se perdendo em prolixias, ora está preso ao reduzido universo vocabular que o vitima principalmente na escola. Como aprender um texto sofisticado, se professores e livros, por melhores que sejam, não conseguem contato com repolhos e alfaces ali matriculados?
Falemos a verdade aos jovens, eles gostam da conversa clara. Com o glossário presente nas mensagens instantâneas do ICQ, do Messenger e dos torpedos, não é possível pensar. Somente a dispensa de vírgulas e pontos já levaria ao caos a comunicação, fim principal que os usuários querem atingir. E se se restringirem à linguagem cibernética perderão via de acesso indispensável ao êxito no trabalho, no amor, na vida: a capacidade de entender e de serem entendidos.
Não bastasse o conceito equivocado do novo idioma, perguntemos: o que se economiza – a economia é a regra básica da elegância, e por motivos de beleza e saúde, os jovens vivem fazendo regime – com a substituição de "não é brincadeira" por "Ñ eh brincadeira"? "De jeito nenhum" por "Djeito nenhum"? "Não vou correr com vocês" por "Ñ vou correr c/ vcs?"?
O glossário mínimo do novo idioma abrevia hora com "hr". Mas por quê, se já temos "h"? "Onde" virou "ond". "Novidade" virou "9idade".
O preço da exclusão
O sintoma: falhamos em tudo na educação dos jovens, vitimados por tantas carências, como vemos todos os dias. Comecemos a reconhecer que sequer lhes transmitimos a língua que herdamos de nossos pais e professores num tempo em que a família e a escola tinham mais atenção.
A norma culta da língua portuguesa não tem mais quem a defenda nem em legendas de filmes na televisão! A confusão é geral. E a escola deu, por atos, palavras e omissões, grande contribuição ao atual descalabro de que o idioma cibernético é um dos mais óbvios sintomas.
Demos telefones celulares também aos pobres, que podem comprá-los bem baratinhos e em suaves prestações no crediário. Não lhes demos o direito de comprar livros com tamanhas facilidades. Para exemplificar: se os livros fossem alardeados e promovidos como são celulares e computadores, o idioma cibernético não teria lugar.
Ainda hoje é muito fácil comprar um automóvel ou um bicho de estimação. Vá o prezado leitor comprar um trator ou uma vaca leiteira, para ver como será atendido no crediário. É quase uma irresponsabilidade tratar de assunto tão complexo em tão poucas linhas. Mas o contexto é este: os sem-terra e os sem-livro habitam o mesmo Brasil. Fora da Galáxia Gutenberg, todo mundo será marginal e como tal será tratado.
Assim como a gíria não livra os meninos pobres dos seculares males sociais, o idioma cibernético não os livrará da marginalidade em que vivem, da falsa cultura em que se movem, da pobreza vocabular que os leva a esses terríveis insucessos numa simples redação de vestibular.
Nós lhes negamos o código, a chave da porta de entrada. E eles é que estão pagando o preço da exclusão. Que pelo menos nós, os letrados, não nos desculpemos com auto-indulgências que não nos ajudam a compreendê-los, apenas nos eximem de responsabilidades.
Texto inserto no Observatório de Imprensa, do Brasil