« (...) Em Luanda, já se nota que há muita gente que não consegue falar uma outra língua lá que não seja português. Claro que é o "nosso" português, com as nossas palavras próprias, mas é essa a língua materna de muitos angolanos. (...)»
OEm – Na sua tese de doutoramento, fala de um novo tipo de emigração portuguesa para Angola pós-crise [de 2008]. Mas depois também fala muito da questão de Angola, que foi uma das colónias de Portugal, e de haver uma ligação grande ainda em termos culturais. Focando a primeira parte, o que é que interpreta enquanto "novo" tipo de emigração?
AA – O discurso geral, aqui em Portugal, quando se falou dessa emigração, foi muito focado nas pessoas qualificadas que foram para a Angola. Angola saiu de uma guerra em 2002, houve aquele boom económico e precisava de bastante reconstrução. Mas o discurso aqui foi mais baseado na ideia de que a emigração portuguesa para Angola era altamente qualificada e verifiquei que não é assim tão black and white [«a preto e branco»]; houve muita gente que emigrou para Angola como aventureiros, à procura de oportuinidades; nem todos foram para lá com as companhias de construção, esse é um dos aspetos. Outro aspeto subjacente a essa emigração está também baseado no tipo de ideia que nós, os angolanos, temos sobre Portugal. Em Angola, Portugal é visto como um país desenvolvido e um país avançado; então, toda a gente que vem para Portugal é automaticamente considerada qualificada em Angola, porque veio de Portugal. Foram mais ou menos estas coisas que fui analisando, juntamente com a forma como a cultura portuguesa é vista em Angola, como o caso da língua portuguesa, os nomes portugueses… Há aí algum legado que ainda continua a desempenhar um grande papel na sociedade angolana.
OEm – Detetou que havia algum tipo de benefício em Angola para uma pessoa que tivesse, por exemplo, um nome mais português, uma educação mais portuguesa, mesmo sendo angolano?
AA – Há várias categorias. Primeiro, há angolanos formados em Angola, que geralmente não são muito bem considerados, porque se pensa que os estudos em Angola não são muito sérios e que as pessoas que se formam em Angola não sabem muito. Esse é o estereótipo. Depois, há a segunda categoria, que é de angolanos formados nos outros países africanos, como a África do Sul ou a Namíbia, por exemplo. Depois, há uma outra categoria, que é de angolanos formados no Brasil. E, depois, há a dos angolanos formados em Portugal, no Reino Unido e noutros países, como os Estados Unidos, por exemplo. Há estas classificações. Falando concretamente dos angolanos formados fora de Angola, são as pessoas que mais críticas tendem a apresentar, no seguinte sentido: um português e um angolano estudam na mesma área em Portugal e quando terminam os estudos vão ambos para Angola à procura de trabalho; o português acaba por ter mais vantagens. É daí que vem a critica que eu faço das ideias colonialistas que dominam um certo setor da elite angolana, que continuam a colocar Portugal num patamar superior. Então, se alguém tem uma empresa e tem a possibilidade de empregar um português, claro que prefere empregar um português em detrimento de um angolano, mesmo um angolano formado fora de Angola, ou formado mesmo em Portugal. Eu lembro-me que conheci um homem de negócios que disse: «Se tens um angolano e tens um langa» – langa é a palavra pejorativa que os angolanos usam para os emigrantes da República do Congo – «se tens um langa e um português a vender numa loja, as pessoas vão pensar que o que o português está a vender é original, e que o que o langa está a vender é falso.» Esta é a narrativa das pessoas, e mesmo o discurso nacional em Angola é que Portugal é um país irmão e os países que rodeiam Angola são países vizinhos. Então aí já há diferença: Portugal é irmão, e os outros países africanos são países vizinhos. Aqui entra aquele legado colonial que continua a dominar parte da sociedade angolana. E também os nomes, não é? Em Angola, ainda hoje, é considerado angolano alguém que fale bem português, que tenha um nome português. Lembro-me que houve um participante [na minha investigação] que disse que queria dar à filha um nome africano; foi ao registo e a senhora disse: «Não, esse nome aqui é muito pesado, muito africano, tem que colocar outro nome», e tinha uma lista de outros nomes que foram lá colocados e eram praticamente todos: João, Fernando, Pedro… Porque se colocar um nome como por exemplo: Ungulo – que é um nome tipo leitão ou porco – as pessoas dizem logo que não, que esse nome aqui é muito pesado, que a pessoa vai sofrer bullying na escola. Então é aconselhado colocar outro nome. Estas são algumas das políticas que foram, indiretamente, transferidas do tempo colonial para o nosso tempo, e que continuam a fazer parte da definição de quem é ou não angolano.
OEm – Ou seja, é como se as próprias instituições já estivessem de tal forma formatadas, que tornava muito difícil fugir à matriz definida.
AA – Exatamente. É praticamente um copy-paste de muitas coisas que caracterizaram o tempo colonial, e que continuam indiretamente a dominar certos setores da sociedade angolana.
OEm – Muito, muito interessante. No seu artigo, o Asaf diz que, no contexto de se compreender a emigração portuguesa para a Angola é necessário ter em atenção três conceitos: o da teoria colonial – que já falou um bocadinho – o do luso-tropicalismo e o da colonialidade, sendo estes a base para a construção da noção da temática do artigo “Skilled white bodies” [«Corpos brancos qualificados»]. Como é que cada um destes três conceitos influi na construção da noção de «skilled white bodies», e o que é que é esta noção de «skilled white bodies»? Como é que se caracteriza?
AA – «Skilled white bodies» é ideia de que os corpos brancos, no contexto angolano, são bem aceites. É mais ou menos esse o conceito.
OEm – Qualificados?
AA – Qualificados, mas no sentido em que o conceito de «qualificado» é um conceito plástico. Então, sim, qualificado, mas no sentido de que o facto de ser branco dá automaticamente privilégios no contexto angolano. É mais ou menos isso, é essa a ideia. Ou seja, no contexto angolano, as pessoas são formatadas a pensar que quem vem de Portugal e é branco, sabe tudo, então é neste sentido que eu utilizo o conceito de «qualificado». Já a questão do luso-tropicalismo é uma ideia de que continua a ser alvo de grande debate até hoje, tanto aqui em Portugal como também em Angola, especialmente a questão de que Portugal não tem racismo, de que Portugal é um país acolhedor… Sim, de alguma forma faz sentido, temos que admitir que Portugal tem alguns aspetos positivos, mas no que respeita à questão do racismo é uma luta constante, mesmo existindo muitos intelectuais portugueses que dizem que Portugal é um paraíso racial. É mais ou menos neste aspeto que eu trago o conceito de luso-tropicalismo, mas conectando-o também a Angola, essencialmente à forma como as pessoas tendem a definir um angolano enquanto alguém que tem que falar bem português e ter um nome português.
Em relação à questão da colonialidade, tem a ver com a forma como alguns aspetos coloniais jogam com a pele de uma sociedade pós-colonial: aspetos de beleza, aspetos de nome, aspetos de cultura, o que é considerado alguém civilizado, coisas assim. Eu utilizo este conceito essencialmente com um aspeto cultural, que continua do legado português cultural, da área da civilização, da missão civilizatória, que continua a jogar um papel no contexto angolano, [de tal maneira] que muita gente continua a pensar que comer de faca e garfo [é sinal de] alguém sofisticado. Lembro-me que, na primeira vez que estive na África do Sul, vi alguns dos meus colegas, que eram extremamente inteligentes, do Zimbábue, e estão intelectualmente mais avançados que eu, a comerem com as mãos, coisa que em Angola ninguém faz. Há um professor português que trabalha em Oxford, que também utilizou alguns destes aspetos que falei, que concluiu que as elites angolanas estão mais ligadas a Portugal do que aos africanos e aos países vizinhos. Esta colonialidade exerce poder no que respeita à aceitação, em termos de oportunidades, nas mais diversas situações. Por exemplo: atualmente fala-se mais português em Angola do que no tempo colonial. Depois da independência foram usadas políticas para unir o país, e uma das formas foi usar o português: em Luanda, já se nota que há muita gente que não consegue falar uma outra língua lá que não seja português. Claro que é o "nosso" português, com as nossas palavras próprias, mas é essa a língua materna de muitos angolanos. Conheci, há uns tempos, um dos grandes escritores angolanos, que nasceu em Luanda, e quando lhe perguntei porque é que ele não publicava em quimbundo, ou noutra língua nacional que não o português, ele respondeu que tinha nascido a falar português e que já não tinha capacidade para aparender e escrever noutra língua.
É muito comum em Angola as pessoas terem o português como língua materna, apesar de nunca terem estado cá em Portugal ou coisa parecida, isto porque houve a tal política de que falei anteriormente, de unir o país através de uma língua comum, e quem não se encaixasse dentro deste padrão era completamente segregado. Já encontrei pessoas, angolanos, que saíram de Angola em crianças para irem para países vizinhos, e que falavam uma língua nacional, por exemplo umbundo, mas que não falavam português, e quando regressaram para Angola e tentaram pedir documentos, obtinham respostas como: «Ó pá, tu não és angolano», «Não, eu sou angolano, mas não falo a língua…», «Falas português?», «Não», «Não falas português, então, não és angolano. Para ser angolano tem que falar português.» Então é mais ou menos assim neste aspeto.
Na imagem à esquerda, a baía de Luanda, vista da Fortaleza de São Miguel (1576). Fonte: "Angola", Wikipédia (consultado em 09/09/2022).
Cf. Ah, mas é só uma palavra... Ou sobre como o racismo estrutura nossa forma de pensamento! + Expressões racistas que deviam ser substituídas do vocabulário + Descrição Linguística, Educação e Cultura em Contextos Pós-Coloniais
Extrato de uma entrevista apresentada em OEm Conversations with (setembro de 2022), publicação periódica de entrevistas do Observatório da Emigração.