O Mali e a rejeição da língua colonial - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O Mali e a rejeição da língua colonial
O Mali e a rejeição da língua colonial

« (...) [A]té agora, mais de 50% das escolas primárias do Mali tinham currículo bilingue: instrução inicial feita numa língua nacional e o francês a ser língua estrangeira até ao 3.º ano, tornando-se, progressivamente, a principal língua de ensino a partir do 4.º ano. Algumas eram exclusivamente francófonas. (...)»

 

Mali é um país interior, da África Ocidental, que confina a norte com a Argélia e, no sentido horário, com o Níger, o Burquina Fasso, a Costa do Marfim, a Guiné-Conacri, o Senegal e a Mauritânia. Tem uma área de 1 240 000 km² e uma população estimada (2018) de 19 milhões de habitantes. The Etnologue refere mais de 20 milhões, dos quais apenas 36% letrados. A gloriosa Tombuctu, hoje a ser tragada pelas areias do deserto, situa-se no Mali .

Nos finais do século XIX, o território correspondente ao atual país integrou o Sudão Francês e o Mali tornou-se independente a 20 de setembro de 1960. Desde então, tem tido uma história conturbada, de instabilidade política, social e sucessivos golpes de estado, os dois últimos em agosto de 2020 e maio de 2021, com motivações declaradamente antifrancesas.

O panorama linguístico do Mali é muito complexo. De acordo com The Ethnologue, estão recenseadas 68 línguas no país (o Glottolog indica 78), das quais 63 autóctones: 51 pertencem à família linguística Níger-Congo, seis à Nilo-Sariana, três à Afro-Asiática, duas são línguas gestuais e uma é isolada, i.e., não aparentada com nenhuma conhecida. O Mali é, portanto, um caso evidente de multietnicidade e de multilinguismo.

De entre as suas muitas línguas, as autoridades malianas estabeleceram 13 como línguas nacionais: o bambara, o fula, o songai, o soninqué, o dogon, o cassonqué, o maninca, o bozo, o minianca, o senufo, o bobo, o tamaquexe e o árabe hassani. O bambara é a língua mais falada (por cerca de metade da população), seguindo-se o fula e o songai. Muitas são línguas minoritárias, transfronteiriças e muitas conhecem pouca codificação.

Como aconteceu com a maioria dos estados ex-coloniais de África, no Mali a língua de colonização tornou-se, após a independência, a língua do Estado. O francês foi proclamado, pelo artigo 1.º da Constituição de 1960, «a língua de expressão oficial», situação reiterada pelo artigo 25.º da Constituição de 1992, que refere: «O francês é a língua oficial.» No entanto, de acordo com The Ethnologue, atualmente apenas 15 mil malianos falam francês como língua materna e menos de três milhões como língua segunda ou estrangeira. Se se tiver em consideração que o francês é a principal língua de ensino do Mali, percebemos que o panorama educativo não pode ser brilhante.

A nova Constituição do Mali, referendada em junho e proclamada a 22 de julho de 2023 (Decreto N.°2023-0401/PT-RM) veio concutir o status quo da política linguística maliana. No seu artigo 31.º, o texto constitucional proclama: «As línguas nacionais são as línguas oficiais do Mali. (...) O francês é a língua de trabalho. O Estado pode adotar qualquer outra língua como língua de trabalho.» Se esta medida pode fazer, e faz, sentido do ponto de vista linguístico, tendo em conta o quadro traçado, os efeitos a médio e longo prazo desta mudança, para a população e o futuro do país, são imprevisíveis. E.g., até agora, mais de 50% das escolas primárias do Mali tinham currículo bilingue: instrução inicial feita numa língua nacional e o francês a ser língua estrangeira até ao 3.º ano, tornando-se, progressivamente, a principal língua de ensino a partir do 4.º ano. Algumas eram exclusivamente francófonas. A partir de agora, ninguém sabe como será.

Fonte

Artigo da linguista e professora universitária Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias  de 9 de outubro de 2023.

Sobre a autora

Margarita Correia, professora  auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora do ILTEC-CELGA. Coordenadora do Portal da Língua Portuguesa. Entre outras obras, publicou Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009) e, em coautoria, Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010). Mais informação aqui. Presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) desde 10 de maio de 2018. Ver, ainda: Entrevista com Margarita Correia, na edição número 42 (agosto de 2022) da revista digital brasileira Caderno Seminal.