Uma língua é uma visão do mundo e, por isso, subentende apreciações que, associadas a palavras e outras unidades do léxico, são aceites pelos falantes geralmente sem grande discussão. Questionando esta passividade, depressa se descobre que grande parte das palavras – sobretudo as que nos servem para denominar referentes – não escapa a uma análise crítica, podendo esta comprometer a própria comunicação mais prática. As definições dos dicionários raramente escapam a este escrutínio, e a consulta de obras da lexicografia antiga ou contemporânea leva a tomar consciência da historicidade do significado lexical.
Ao encontro destas considerações vêm os relatos mediáticos do discurso proferido pela escritora moçambicana Paulina Chiziane na cerimónia de entrega do Prémio Camões 2021. A escritora defendeu a necessidade de descolonizar a língua portuguesa, visto haver definições de dicionário que inscrevem conceções preconceituosas coloniais, racistas e sexistas. Inocência Mata, investigadora e docente universitária, reforçou este ponto, também fazendo referência aos dicionários. Tomando por base o trabalho que a jornalista Isabel Coutinho dedicou à cerimónia de 5 de maio em Lisboa e ao discurso de Chiziane, comentam-se as palavras destacadas e criticadas em quatro passagens dessa peça.
1. Catinga
«Os dicionários de língua portuguesa, se ainda não mudaram, referiu, têm definições de palavras como catinga, “que vem como cheiro nauseabundo característico da raça negra”, o que a [Paulina Chiziane] deixa logo triste.»
Com a forma catinga, há várias palavras homónimas. Referido genericamente à noção de «cheiro, odor corporal», o termo catinga tem atualmente registos cuja definição não tem relação com raças humanas (conceito que hoje também parece afastado da lexicografia recente). Com efeito, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, catinga (ou caatinga), que tem origem obscura, é «cheiro intenso e desagradável a suor»; e os dicionários da Infopédia (Porto Editora) e da Priberam apresentam definições parecidas.
Contudo, há cerca de um século e até não há muitas décadas, explicitava-se sem rebuço a relação entre esse (mau) cheiro e um tipo humano em particular. Por exemplo, o dicionário de Caldas Aulete na 1.ª (1881) e 2.ª (1925) edições define catinga como «transpiração fétida principalmente dos pretos»; Cândido de Figueiredo, no seu dicionário (1.ª edição de 1899) atribui uma aceção praticamente igual; e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que se apresenta como a 10.ª edição do conhecido Morais (1949-1959), diz-se que se trata de «cheiro desagradável da pele dos pretos». Porém, nem todos os dicionários com mais de 25 anos definem catinga deste modo, pois, consultando a 1.ª edição do referido dicionário de Morais, de 1796, acha-se uma formulação sem associações rácicas imediatas: «transpiração fétida dos sovacos, etc. bodum». Mesmo assim, a alusão à cor da pele esconde-se na palavra bodum, que, no insuspeito Dicionário Houaiss (2001), conta, entre várias aceções, esta, de valor pejorativo: «cheiro de suor de indivíduo negro ou mulato».
2. Matriarcado, patriarcado
«Paulina Chiziane nomeou também a [palavra] matriarcado, [termo] de que gosta muito e que aparece definida como “costume tribal africano”, em contraposição a patriarcado, “tradição heróica dos patriarcas” provocando gargalhadas na plateia.»
Nos dicionários recentes e atualizados referidos anteriormente, no ponto 1, matriarcado não encontra aceção igual ou parecida a «costume tribal africano»; mas, na 10.ª edição do Morais, uma das aceções atribuídas é a de «costume adoptado em algumas tribos africanas em virtude do qual as mulheres exercem autoridade preponderante na família». Contudo, a respeito de patriarcado não se encontraram definições semelhantes à que é referida pela galardoada com o Prémio Camões.
3. Palhota
«A escritora referiu ainda «uma última palavra», «mas há muitas!», lembrou. «Palhota, que aparece como habitação rústica característica dos negros».
Neste caso, alguns dicionários recentes – Priberam e o dicionário da ACL – consignam, entre outras aceções de palhota, a de uma construção rústica referida a África ou povos e comunidades africanas, sem alusão à cor da pele. Não obstante, numa das aceções incluídas na 1.ª edição do Dicionário Houaiss, de 2001, faz-se essa associação – «choupana de negros africanos» –, bem presente nos dicionários mais antigos aqui em destaque, ou seja, na 10.ª edição do Morais, no dicionário de Cândido de Figueiredo e na 1.ª edição do dicionário de Caldas Aulete (1881). Nos registos de tal aceção de palhota igualmente se refere a sinonímia com cubata que, segundo o Dicionário Houaiss, vem «do quimbundo kubata 'casa', que viria da expressão ku bata 'em casa'».
É de notar que, na 1.ª edição do dicionário de Morais (1796), a definição da palavra palhota não a relaciona com África (muito embora haja uma remissão para uma obra parcialmente dedicada à Etiópia – Relaçam geral do estado da christandade de Ethiopia (1629), de Manuel da Veiga; e no dicionário de Domingos Vieira (1871), a forma apresentada é palhote, com o significado de «casa coberta de palha». Dir-se-ia, portanto, que a conotação negro-africana de palhota é mais tardia.
4. Mulher
«Os dicionários da língua portuguesa continuam a reiterar esse discurso», lembrou a académica [Inocência Mata], embora já tenham mudado a definição de mulher, que em tempos foi «ser de espécie inferior».
Em todas as obras aqui referidas, mais recentes ou com mais de um século, não é possível confirmar que mulher se defina genericamente como «ser de espécie inferior». Contudo, há de facto uma aceção que decorre da uma visão classista: « Pessoa do sexo feminino pertencente á plebe ou ás classes inferiores da sociedade (por oposição a senhora ou dama)» (dicionário de Caldas Aulete, 1881). Esta aceção é retomada e ligeiramente reformulada no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, mas está ausente dos dicionários da Infopédia e da Priberam.
O que acabou de ser exposto é meramente um conjunto de observações feitas no intuito de enquadrar um pouco a leitura de um discurso muito especial, o de uma autora que, pela primeira vez na história do Prémio Camões, reúne africanidade com feminismo. A chamada de atenção de Paulina Chiziane, que também divertiu quem a ouviu, parece confirmada sobretudo pelo exame de dicionários oitocentistas. Caberá aos dicionários do XXI elaborar definições sensíveis à memória dolorosa do passado colonial, porque a língua portuguesa é língua de muitos e de todos. E, encontrado o tom correto, importará também manter e disponibilizar o registo dos muitos significados associados a cada palavra – todos, até os de evocação mais traumática.
Cf. «A língua portuguesa precisa de tratamento, limpeza e descolonização«, diz Paulina Chiziane + Ah, mas é só uma palavra... Ou sobre como o racismo estrutura nossa forma de pensamento! + Expressões racistas que deviam ser substituídas do vocabulário