Um livro que faz o diagnóstico do estado, em Angola, da antroponímia com origem no umbundo* e apela à conservação desta língua falada na região de Benguela e noutras áreas. Tal é o propósito da sua publicação, como declaram os autores, Bonifácio Tchimboto e Ana Maria Katemo Ucuahamba, eles próprios portadores de nomes umbundos: «[...] [A]chamos ser nossa missão académica contribuir para um resgate, ou seja, procurar caminhos para salvar e tirar o nome umbundu da prisão de depreciação e devolvê-lo ao espaço linguístico e cultural hoje usurpado por nomes peregrinos» (Do Desprezo ao Apreço do Nome, 2019, pp. 7/8).
Nas 136 páginas do livro, desfila uma série de informações e observações bem condensadas e documentadas que, de maneira incisiva, guiam o leitor no contacto com um património linguístico em erosão acelerada: a antroponímia tradicional dos Ovimbundos, etnia predominante na região benguelense, cuja história cultural entronca no grande caudal de práticas rituais da África pré-colonial. Não sendo a descrição sistemática das estruturas do umbundo uma preocupação dos autores, são mencionados alguns traços característicos desta língua, de modo a permitir avaliar o grau de distorção que o contacto com o português, ao longo de mais de 500 anos, acarretou no reportório onomástico das diferentes regiões de Angola, em particular, em Benguela.
Três são os capítulos por que a obra se reparte. No primeiro, define-se o campo dos estudos dos nomes próprios (onomástica), orientando-se a exposição para as características mais marcantes do sistema de atribuição de antropónimos nas culturas das línguas bantas. Neste contexto, salienta-se o nome sando (pp. 32-38), uma instituição onomástica típica dos povos falantes de línguas bantas, que consiste na nomeação de uma criança mediante a escolha do nome de alguém, vivo ou morto, que se quer homenagear.
O segundo capítulo é um interessante estudo de como os registos notariais do tempo colonial («holocaustos do nome», p. 59) rasuraram os nomes indígenas, numa atitude de desprezo geral pelas línguas e culturas da África negra. Como os autores sublinham, o declínio da onomástica umbunda tem-se processado pelo desaparecimento dos nomes patrimoniais e dos seus padrões, suplantados por nomes ocidentais, sobretudo portugueses. A substituição ocorre frequentemente por semelhança fonética, como acontece com a própria denominação sando, aportuguesada como Santo ou Santos (p. 89). Identificam-se ainda interferências do português no registo antroponímico e toponímico, sobretudo notórias em nomes começados por oclusivas sonoras nasalizadas (nd, ng, mb), segmentos típicos da família banta: Mbundo passa ao apelido Bundo (p. 60), e Ndepeta, a Depeta (e até a de Peta, com reanálise de De como a preposição de, recorrente nos apelidos em português; cf. p. 88); Mbengela e Ngola convertem-se nas atuais formas Benguela e Angola (pp. 61/62), respetivamente.
Finalmente, o terceiro capítulo propõe uma linha de ação motivadora do apreço pelo nome tradicional umbundo, advogando um programa mais geral de recuperação dos sistemas antroponímicos tradicionais de Angola. Apela-se, assim, com a colaboração de linguistas e antropólogos, ao combate contra a pressão do português e doutras línguas ocidentais sobre o património linguístico pré-colonial de Angola.
Do Desprezo ao Apreço do Nome constitui, portanto, um estudo-ensaio muito útil para compreensão da complexa situação linguística quer de Angola quer dos outros países africanos, todos marcados pela colonização europeia. É uma leitura suscetível de causar estremecimento entre leitores menos conscientes das consequências da associação da língua portuguesa ao colonialismo europeu dos séculos XIX e XX. Na verdade, quem se habituou a ver o português como vítima quase indefesa do impacto anglófono sentirá certo choque ao perceber que, na ótica desta obra, se concebe o mesmo idioma como arma de aniquilamento cultural. Mas o balanço pode ser, afinal, positivo, porque lança o desafio de se desenvolver na chamada lusofonia a maturidade de também olhar desapaixonadamente para a história do português – por exemplo, como veículo de desígnios imperialistas.
* Os autores optam por umbundu, forma correta que se usa como nome e adjetivo invariáveis (como bantu). Nesta apresentação, escolhe-se a forma umbundo, que permite flexão em género e número (cf. registo de umbundo no Vocabulário Comum da Língua Portuguesa, do Instituto Internacional da Língua Portuguesa).
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