Em cerimónia realizada em Lisboa, em 5 de maio de 2023, Dia Mundial da Língua Portuguesa, a escritora moçambicana Paulina Chiziane recebeu o Prémio Camões 2021, perante o primeiro-ministro de Portugal e o embaixador do Brasil no mesmo país. Na ocasião, proferiram-se discursos, entre eles, o da galardoada, que teceu considerações sobre a sua relação com a língua portuguesa, juntando críticas à definição de várias palavras.
Transcreve-se, com a devida vénia, o trabalho intitulado "Paulina Chiziane e o desejo de que 'a língua portuguesa fosse realmente de todos'", que a jornalista Isabel Coutinho assinou no jornal Público e no qual recolheu passagens do discurso que Paulina Chiziane proferiu na cerimónia de entrega.
A escritora moçambicana recebeu o diploma do Prémio Camões de 2021 [no dia 5 de maio de 223], em Lisboa, pelas mãos do primeiro-ministro [português} e do embaixador do Brasi [em Portugal]l. Defendeu uma descolonização da língua portuguesa.
«A língua portuguesa para ser nossa, definitivamente nossa, precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização», defendeu no seu discurso de agradecimento a escritora moçambicana Paulina Chiziane, numa das cerimónias mais emotivas e simbólicas, de todas aquelas a que já pudemos assistir, de entrega do Prémio Camões. «Este prémio, para mim, mostra que é chegada a hora de construir um mundo de harmonia e paz», acrescentou a premiada em 2021 com aquele que é o mais importante prémio atribuído ao conjunto de uma obra em língua portuguesa, defendendo uma língua portuguesa de todos.
«É preciso lutar para que as coisas mudem. É preciso coragem para falar», disse Paulina Chiziane no final da cerimónia, aos jornalistas. «É preciso usar a língua portuguesa para negociar uma língua portuguesa mais humana e só nós, africanos, é que podemos fazer isso.» E ao dizê-lo a escritora moçambicana convida todos a conhecerem também a beleza das línguas africanas.
«Um Dia Mundial da Língua Portuguesa, porquê e para quê?», tinha questionado, no seu discurso, o primeiro-ministro, António Costa, referindo o «significado muito especial» de pela primeira vez a cerimónia do Prémio Camões estar a ocorrer no Dia Mundial da Língua Portuguesa, que «deve ser sentido, verdadeiramente, como celebração da comunidade e dos povos que a falam».
Todos tivemos a resposta à pergunta numa cerimónia que acabou em festa com a laureada, depois de receber o diploma do Prémio Camões das mãos do primeiro-ministro português e do embaixador do Brasil, Raimundo Carreiro Silva, a dançar no palco improvisado no antigo Picadeiro Real, no Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.
Estava rodeada de convidados, incentivados pela cantora moçambicana Selma Uamusse, que interpretou as canções Pra sempre, Mama e Ngono Utana. «Senti-me como se estivesse em Moçambique», disse no final ao Público. «Para nós, tudo é festa, tudo é alegria. Mesmo num momento de grande dor nós celebramos sempre com uma festa. E deu-me esse gosto, com música moçambicana. Foi óptimo.»
Margareth Menezes, a ministra da Cultura do Brasil, participou na cerimónia através de uma gravação em vídeo «com uma enorme de alegria de poder celebrar, no Brasil, este momento». Para ela, a primeira mulher negra a estar à frente do Ministério da Cultura do Brasil, foi «muito simbólico e significativo vivenciar esse momento em que pela primeira vez temos uma escritora negra premiada com o Camões».
«Eu venho de África. Sou negra e estou aqui, sendo a primeira negra a receber tal prémio», referiu no seu discurso a escritora, que agradeceu e disse que a sua maior gratidão vai para os seus leitores. Paulina Chiziane questionou-se sobre o que é que a trouxe até este momento. «Será que eu falo português, mesmo de verdade? Não sei. Falo qualquer coisa», disse, realçando que um dos primeiros aspectos para um bom escritor tem de ser a originalidade. Antes, António Costa tinha referido que «o que torna a língua portuguesa uma língua universal, nos nossos dias, é, verdadeiramente, a multiplicidade de formas de utilização e de expressão de todos os que a falam, escrevem e cantam».
«O que é que eu tenho eu, vinda de África? Eu tenho uma terra, tenho uma língua que é a minha herança divina. Cada povo africano recebeu uma língua que tem que preservar, que tem que guardar porque é uma herança divina», disse a autora de Niketche: Uma História de Poligamia, vencedor da primeira edição do Prémio José Craveirinha de Literatura em 2003. «Depois tenho a minha língua portuguesa, que é uma língua de herança humana. Herdámos esta língua nas circunstâncias da História», afirmou Paulina Chiziane, referindo que por vezes se «conjuga esta língua de uma afirmativa e negativa à mistura».
«O império colonial dizia: «Eu tenho mas tu não tens.» E não é justo. Eu tenho uma língua materna que Deus me deu, mas também tenho esta que me foi dada. Porque é que eu tenho que aprender aquela que me é dada e os outros não querem aprender a minha?» e convidou, na cerimónia, todos a aprenderem as línguas africanas.
Catinga, matriarcado, palhota...
«Muita coisa pode ser dita à volta da língua portuguesa, é a minha língua e tenho muito orgulho nela. É nela que eu expresso os meus sentimentos e me afirmo perante o mundo», confessou. Chiziane gostaria que «a língua portuguesa fosse realmente de todos», pois apesar de a língua «ser nossa», ainda tem «umas especificidades» que por vezes a assustam.
Os dicionários de língua portuguesa, se ainda não mudaram, referiu, têm definições de palavras como catinga, «que vem como cheiro nauseabundo característico da raça negra», o que a deixa logo triste. «Realmente somos muitos a manusear os dicionários, mas será que tivemos tempo de olhar para estas questões: de "eu sou tu, não és?’, "eu tenho, tu não tens", como não tens o direito de ter à conta de nos tratarem assim nos livros sagrados como é o dicionário?»
Paulina Chiziane nomeou também a [palavra] matriarcado, [termo] de que gosta muito e que aparece definida como «costume tribal africano», em contraposição a patriarcado, «tradição heróica dos patriarcas» provocando gargalhadas na plateia. Lembrou que em África há o matriarcado, sobretudo na região norte de Moçambique. «É um costume tribal, deita fora, não serve para nada, é coisa de africano. Mas quando é patriarcado já tem valor. Que machismo é esse?», questionou.
A escritora referiu ainda «uma última palavra», «mas há muitas!», lembrou. «Palhota, que aparece como habitação rústica característica dos negros». E voltou a fazer rir a sala quando disse que hoje está «provado que é uma habitação ecológica. Então, a língua portuguesa para ser nossa, definitivamente nossa, precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização», defendeu. «Precisamos de saber conjugar o verbo ser e o verbo ter. É só o presente do indicativo. Sem atropelar os nomes, como é que em bom português o império colonial misturava afirmativa e negativa ao mesmo tempo? Os nossos combatentes pela liberdade souberam conjugar estes dois verbos: «eu tenho» e «eu sou» e «eu vou" pela minha liberdade hei-de lutar para todo o sempre.”
O júri do Prémio Camões 2021, composto pelos professores Jorge Alves de Lima e Raul César Fernandes (Brasil), pelo [jornalista e escritor] Tony Tcheka (Guiné Bissau), pela professora Teresa Manjate (Moçambique) e pelos professores portugueses Ana Maria Martinho e Carlos Mendes de Sousa, que presidiu ao júri, foi unânime no reconhecimento do nome de Paulina Chiziane. No seu discurso, o presidente do júri lembrou que Paulina chegou à literatura a partir do lugar da origem. «A sua língua materna é o chope, virá depois o ronga e só mais tarde, com a escola, se encontrará com o português com que nos fala nas suas histórias, enriquecendo, na pluralidade e na diferença, a oficial língua comum de todos nós.»
Para o académico, «é na língua portuguesa que Paulina Chiziane reinventa o mundo, fazendo dela uma ressoante casa polifónica, onde ecoam as línguas maternas, dando-nos, na beleza dos seus escritos, a medida precisa da ductilidade de um organismo vivo em transformação criativa».
No final da cerimónia, Paulina Chiziane chamou a atenção dizendo aos jornalistas que «às vezes as palavras enganam», referindo-se a ser referida como a primeira mulher negra a receber este prémio. «Quando a gente diz a primeira mulher negra parece que já houve um primeiro homem negro. Não houve ninguém com matriz banto, a primeira pessoa seja banto ou mulher sou eu», disse a escritora.
«Aconteceu algo de espantoso»
«Foi emocionante, a primeira mulher negra a ganhar o Prémio Camões, aliás a primeira pessoa negra a ganhar este prémio», disse (...) a professora e investigadora [são-tomense] Inocência Mata realçando a espontaneidade com que Paulina Chiziane apresentou, agradeceu e falou das suas angústias em relação à língua portuguesa, que são antigas. «Os dicionários da língua portuguesa continuam a reiterar esse discurso», lembrou a académica, embora já tenham mudado a definição de mulher, que em tempos foi «ser de espécie inferior».
«Este prémio foi um grande reconhecimento», disse Inocência Mata. Paulina Chiziane é «uma escritora que subiu a pulso, sem padrinhos», sempre «muito pouco reconhecida no seu país», e o Prémio Camões «foi uma grande projecção, embora ela já fosse uma escritora muito conhecida», traduzida e estudada fora de Moçambique. «Os seus temas são incómodos: a poligamia e os casamentos arranjados, a hipocrisia dos políticos, um Estado pós-colonial que continua a fazer a sua gestão a partir de leis coloniais».
«Há aqui dois momentos», afirmou no final ao Público [a escritora portuguesa] Lídia Jorge. O momento antes desta cerimónia, em que a escritora que viveu em Moçambique ia ali «apenas para cumprimentar uma mulher que escreve em língua portuguesa, que acaba por ter uma obra que é única no seu país e também única dentro daquilo que é o panorama da língua portuguesa». Mas durante esta cerimónia «aconteceu algo de espantoso» que foi o discurso de Paulina Chiziane. «Foi um discurso tocante, magnífico, daqueles discursos reveladores da alma profunda de uma observadora e de alguém que propõe uma construção a partir de uma análise da própria língua, a partir dos verbos».
Para a autora de A Costa dos Murmúrios, foi «coisa tão tocante» que julgou que naquela sala se estava a retomar aquilo que foram os aplausos quando foi da Nona Sinfonia de Beethoven porque «ninguém queria parar de aplaudir». Um momento magnífico, nas palavras da escritora portuguesa. «Com uma festa moçambicana a seguir, que transformou aquilo que é um momento de celebração da literatura numa verdadeira festa», considerou Lídia Jorge. «Quando se diz que o momento pós-literário está aí, olhando para o que aconteceu, temos de dizer o contrário: estamos no cerne da literatura, ela continua, ela é falada em português com vários acentos e é uma alegria ter participado.»
«Canimambo [obrigada], Paulina Chiziane», disse a cantora Selma Uamuse, emocionada, quando subiu ao palco para encerrar a cerimónia com três canções nas línguas de Moçambique. Falando enquanto moçambicana da diáspora, mulher negra, artista, Uamuse afirmou que teve «orgulho» em poder assistir a um dia como este, foi uma honra: «Paulina Chiziane, do fundo do coração, canimambo, canimambo, canimambo.»
Para Paulina Chiziane, este prémio é visto à luz da mudança. «Houve várias lutas sem necessidade porque nós não sabemos conjugar os verbos. Mas parece que agora começamos a compreender que quando eu digo «eu sou», «tu és», então «nós dois somos». Esta conjugação antiga que mistura negativas com afirmativas parece que está a mudar. Esta, para mim, é o início de uma nova era.»
Cf. Paulina Chiziane recebe prémio Camões e pede descolonização da língua portuguesa + Escritora Paulina Chiziane pede descolonização da língua portuguesa + Paulina Chiziane: «As histórias de África não foram escritas ainda. Se tivesse oito mãos escrevia muitas» + A descolonização da língua portuguesa + «Moçambique nunca conheceu momentos de paz»: entrevista a Paulina Chiziane [in Expresso, 5/05/2023] + Paulina Chiziane: «Nunca fiz um plano para ser escritora, nem grande nem pequena» + Paulina Chiziane e Salomé Cabo em Uma Questão de ADN + Podcast do Encontro de Leituras: conversa com Paulina Chiziane + Ah, mas é só uma palavra... Ou sobre como o racismo estrutura nossa forma de pensamento! + Expressões racistas que deviam ser substituídas do vocabulário
Trabalho transcrito, com a devida vida vénia, no jornal Público, do dia 5 de maio de 2023. Mantevem-se a norma ortográfica de 1945, conforme o original