«[Os manuais de História analisados] referem-se apenas ao exército português, silenciando e desconsiderando as vidas perdidas africanas, numa inaceitável ocultação da responsabilidade histórica de Portugal.»
A partir dos manuais de história é difícil compreender o porquê da expressão “O 25 de Abril nasceu em África”. A radicalização dos capitães de Abril é narrada como resultado da revolta contra as injustiças na carreira militar e da constatação de que seria impossível vencer a guerra colonial. É como se o contato destes com o projeto político-ideológico dos movimentos de libertação pouco ou nada tivesse pesado.
Vários manuais, como o Um novo tempo da história (12.º ano, Porto Editora), apresentam os líderes dos movimentos de libertação africanos. Para além dos limites do multiperspectivismo e do foco em figuras heróicas, é curto o esforço para mostrar o “outro lado” da história. Pouco ou nada se fica a saber sobre a organização, estratégias, ligações internacionais e propostas destes movimentos, nem sobre o envolvimento prévio dos líderes na luta estudantil, antifascista e anticolonial em Portugal. Para quando uma menção à Casa dos Estudantes do Império?
A ideia de que se tratou de uma revolução «quase sem derramamento de sangue» (Linhas da História, 12.º ano, Areal Editores), desde logo, retira de cena os mortos e feridos em 13 anos de guerra em África e as décadas de perseguição e tortura de antifascistas pela PIDE. E retoma-se o imaginário bafiento de uma suposta brandura natural portuguesa, algo que a história colonial não corrobora.
O modo como os manuais vão definindo a “descolonização” também levanta questões. Para O Novo Viagens no Tempo (6.º ano, Areal Editores) é a “criação de condições para que os povos das colónias adquiram ou recuperem a independência”. Como se a descolonização tivesse sido “dada” pelos portugueses e não uma conquista dos africanos, uma distorção e uma tentativa camuflada de absolvição histórica. Do mesmo modo, é preciso explicar que o desejo generalizado de acabar com a guerra não implicava, muitas vezes, acabar com o colonialismo, mas antes reformá-lo; nem uma rutura com ideias de superioridade civilizacional e étnico-racial, apenas o repúdio das suas consequências mais bárbaras.
Em quase todos os manuais, como o HGP: História e Geografia de Portugal (6.º ano, Texto Editora), temos números sobre os militares mortos na guerra. Mas referem-se apenas ao exército português, silenciando e desconsiderando as vidas perdidas africanas, numa inaceitável ocultação da responsabilidade histórica de Portugal. O História sob investigação (9.º ano, Porto Editora) é uma das exceções, estimando 45.000 mortos do lado africano entre “guerrilheiros e população civil”.
A narrativa lusotropicalista da guerra é óbvia no HGP em Ação 6 (6.º ano, Porto Editora), quando nos apresenta a imagem de um soldado português com duas crianças guineenses, acrescentando que “os combates não se faziam continuamente” e que “houve momentos de paz e de partilha entre os soldados portugueses e os nativos das ex-colónias”. O Novo HGP 6 (6.º ano, Texto Editores) mostra um soldado branco transportando ao colo um soldado negro ferido, ambos do exército português. O que se pretende com isto? Porque não dizer que a utilização de tropas africanas foi uma estratégia para, exatamente, dominar os africanos ou como o racismo afetava a progressão na carreira militar? Algum manual enfatizaria a cooperação entre pessoas de campos adversários na II Guerra Mundial? Como podem os responsáveis políticos aceitar que nada se diga sobre o Estatuto do Indigenato, o trabalho forçado e o lusotropicalismo?
Nesta crítica ao eurocentrismo na narrativa sobre a Revolução quero, exatamente, homenagear o 25 de Abril. Passados 50 anos, quase tantos como os 48 de ditadura, vemos a reentrada em força de forças reacionárias na cena política. Sabemos que não é de agora, que os ingredientes estavam há muito latentes na sociedade. Devemos perguntar-nos quanto disso se deve à falta de vontade política, à direita e à esquerda, para descolonizar a narrativa histórica, desde logo, nos manuais escolares, nos referenciais curriculares e na formação de professores.
Agradeço o apoio das estudantes da licenciatura de Educação Básica da ESE-IPS na análise dos manuais.
Artigo de opinião incluído no jornal Público em 25 de abril de 2024.