« (...) Não posso senão ser a favor da obrigatoriedade da disciplina de Cidania e Desenvolvimento no currículo nacional e só lamento não ter tido acesso a ela quando jovem. (...)»
No meio da discussão sobre a disciplina Cidadania e Desenvolvimento (CD), dei comigo a indagar a origem e a semântica da palavra cidadania. Esta teve o seu “nascimento” em português na 2.ª edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (1913), que a descreve como «Neol. Bras. Qualidade de cidadão.», sem abonação, nem etimologia. Nos dicionários que consultei, nada encontrei sobre a sua proveniência; nada me espantaria, porém, que a palavra tivesse entrado em português pelo francês, como aconteceu com tantas outras. O Dictionnaire historique de la langue française conta-nos que a palavra citoyenneté, equivalente de cidadania, teve a sua primeira atestação em 1783, com as conotações patrióticas e o conteúdo afetivo que citoyen [ «cidadão»] adquiriu na época da Revolução Francesa. Os primeiros usos de citoyenneté denotam a participação no governo da cité (civis, civitas), segundo o modelo cívico da Antiguidade Clássica; a partir do século XIX adquiriu o seu sentido jurídico, afetivamente neutro, de membro de um estado ou nação. É este sentido jurídico, que predomina na maioria dos dicionários contemporâneos de língua portuguesa consultados, indicando às vezes cidadania como sinónimo de nacionalidade. Na Infopédia encontramos a descrição mais adequada dos significados de cidadania, em quatro aceções, de que transcrevo apenas as pertinentes neste contexto: «a) DIREITO vínculo jurídico que traduz a condição de um indivíduo enquanto membro de um Estado ou de uma comunidade política, constituindo-o como detentor de direitos e de obrigações perante essa mesma entidade» e b) «exercício dessa condição, através da participação na vida pública e política de uma comunidade» – logo, há pessoas com cidadania na aceção a) que não tiveram ou [não] têm acesso à cidadania na aceção b): e.g. as mulheres até 1974 ou os menores de 18 anos. É na aceção b) que a palavra cidadania é usada na disciplina de CD.
Em termos de escolaridade obrigatória, a cidadania é, como a norma linguística, uma ferramenta de mobilidade social, que deve ser fornecida pela escola aos estudantes, pois nem todos a elas têm acesso em casa. Eles até poderão escolher não exercer a cidadania, como poderão escolher não usar a norma linguística, mas escolha pressupõe conhecimento e este não é incompatível (antes complementar) com tudo aquilo que se aprende no seio da família.
Enquanto mãe, custa-me entender que haja pais que defendam privar os seus filhos de todos os instrumentos para o exercício da sua cidadania. Enquanto professora, que sou há praticamente 40 anos, e enquanto cidadã, acredito que a educação é mesmo o alicerce da sociedade democrática, a escola pública tem o papel de nivelador social e que a escolaridade obrigatória deve fornecer, a todos por igual, os conhecimentos, competências e atitudes que lhes confiram empoderamento, qualificação e acesso à cidadania plena.
Não posso senão ser a favor da obrigatoriedade da disciplina de CD no currículo nacional e só lamento não ter tido acesso a ela quando jovem. A minha vida em sociedade teria sido certamente muito mais fácil e proveitosa.
Artigo da linguista Margarita Correia publicado em 19 de setembro de 2020 no Diário de Notícias.