Em breve análise no site Corpus do Português (em linguagem jornalística do português europeu de 2012 a 2019), pesquisei as construções «ter de» + infinitivo e «ter que» + infinitivo sem estabelecer filtros entre modalidade escrita e modalidade falada, e entre registro culto ou coloquial; por estarem os textos em diferentes gêneros textuais próprios da linguagem jornalística, desconsiderei também os níveis de formalidade (do mais formal ao menos formal), na coleta dos dados.
Ademais, desconsiderei a possível distinção semântica e morfológica do que empregado na construção em tela, tomando todos os "quês" como preposição acidental – afinal, até no português europeu, o que é pouquíssimo usado como pronome, como em frases do tipo «Ele não tinha que fazer amanhã» = «Ele não tinha o que fazer amanhã».
E, sim, parti do princípio (na minha opinião, altamente contestável) de que a linguagem jornalística do português europeu (e do português brasileiro, e do português africano, e de qualquer outra língua e suas variedades) é escrita em norma "culta" – apesar de isso ser o que hoje, majoritariamente, se pensa no ambiente acadêmico da Linguística. Mas tal contestação é papo para outra hora.
A despeito disso, ainda assim, acredito que a percentagem final não seja tão distinta do que seria caso todos esses critérios fossem preenchidos com rigor (posso estar enganado, claro).
Sendo assim, eis o que encontrei após investigar as construções «ter de» + infinitivo x «ter que» + infinitivo com verbo ter em diferentes tempos e modos verbais na 3.ª pessoa do singular e do plural – as únicas construções não contempladas foram as com o presente do indicativo, porque o Corpus do Português restringiu o acesso pelo fato de o volume de ocorrências ser gigantesco; com o pretérito mais-que-perfeito simples, por ser um tempo verbal raramente usado; e com as formas nominais do verbo, por falta de tempo (neste primeiro momento):
TEVE DE: 16.609
TEVE QUE: 3.573
TIVERAM DE: 6.121
TIVERAM QUE: 2.044
TINHA DE: 9.832
TINHA QUE: 2.630
TINHAM DE: 2.732
TINHAM QUE: 817
TERÁ DE: 20.884
TERÁ QUE: 8.595
TERÃO DE: 9.540
TERÃO QUE: 2.342
TERIA DE: 5.574
TERIA QUE: 1.305
TERIAM DE: 1.773
TERIAM QUE: 398
TENHA DE: 2.528
TENHA QUE: 818
TENHAM DE: 1.593
TENHAM QUE: 532
TIVESSE DE: 1.244
TIVESSE QUE: 435
TIVESSEM DE: 384
TIVESSEM QUE: 153
TIVER DE: 1.241
TIVER QUE: 524
TIVEREM DE: 434
TIVEREM QUE: 110
Somando todos os casos de «ter de» + infinitivo e «ter que» + infinitivo, chegamos à seguinte porcentagem desses usos na norma "culta" do português europeu:
TER DE: 70%
TER QUE: 30%
.......................
No português brasileiro, certamente é o oposto disso, pois usamos muito mais «ter que» do que «ter de». É apenas uma questão de frequência de uso, de privilégio de uma forma variante em relação a outra.
Embora alguns gramáticos ANTIGOS entendessem que tais expressões tinham valores semânticos diferentes, esse tempo passou, pois o uso determina a norma. Sim, o uso evolui, e a norma o acompanha, inclusive os usos que moldam a norma culta.
Sendo assim, atualmente (na verdade, faz algumas décadas), vários estudiosos normativos e não normativos perceberam que ambas as expressões são usadas como SINÔNIMAS, na fala e na escrita.
O fato de «ter de» + infinitivo talvez ser, no português brasileiro, mais usado em registro formal não torna a construção «ter que» + infinitivo errada ou fora da norma culta. Negativo! Ambas as locuções estão presentes no registro culto.
E, para dar um basta a ensinos anacrônicos e purismos, eis os estudiosos (gramáticos e dicionaristas de peso) que abonam ambas as expressões como sinônimas, mesmo que um ou outro fale em “preferência” de uso:
Evanildo Bechara
Domingos P. Cegalla
Celso Pedro Luft
Maria Helena de Moura Neves
Luiz A. Sacconi
Pasquale Cipro Neto
Édison de Oliveira
Arnaldo Niskier
Adalberto Kaspary
Michaelis
Aulete
Houaiss
Porto (Infopédia)
Etc.
Será que esses usos vão mudar no PE e no PB um dia? Fiquemos de olho.
..............................
Vale dizer que, no Duvidário: 1000 dúvidas da Língua Portuguesa, editado pela Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria e coordenado pelas professoras Paula Cristina Ferreira e Noémia Jorge, ensina-se o seguinte:
«As expressões "ter de" e "ter que" são vocábulos utilizados em contextos diferentes, embora alguns autores defendam que têm o mesmo significado.
A forma verbal "ter de" é utilizada para manifestar um desejo, necessidade, obrigação ou dever em relação a uma ação, uma situação absolutamente necessária. Segundo alguns gramáticos, é considerada uma expressão mais culta.
Tenho de fazer o trabalho rapidamente.
(Tenho de = sou obrigado a /tenho necessidade de fazer o trabalho rapidamente)
A expressão "ter que" é empregue para dar uma informação sobre o que o locutor possui.
Não tenho que comer no frigorífico. (Não tenho que = não tenho nada para comer no frigorífico)»
E ainda:
«Há autores que consideram que as expressões "ter de" e "ter que" são sinónimas, indicando ambas a necessidade e a obrigação.»
Referências bibliográficas:
Neves F. (s.d.). Dúvidas do Português [em linha].
Ramalho E. (1985). Dicionário estrutural, estilístico e sintáctico da língua portuguesa. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão.
Rocha, M. R. (2005). Dúvidas sobre o «ter de» e o «ter que”. In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa [em linha].
Texto publicado em 1 de fevereiro de 2025 no mural do autor no Facebook e aqui transcrito com a devida vénia.