«Os estudos estilísticos nos ajudam a desfazer a ideia de que a preocupação com a forma é mero artificialismo.»
Um dos campos mais fascinantes do mundo das Letras são os estudos de estilística. Digo isso e imediatamente sinto a necessidade de me explicar. De um lado, porque muita gente nem sequer sabe do que se trata; de outro, porque há quem considere tais estudos irrelevantes. Por mim, eles ocupariam grande parte dos currículos de Língua Portuguesa na escola.
Não me refiro à exposição dos vícios de linguagem, presentes em algumas gramáticas tradicionais, nem às longas listas de figuras de linguagem, ou de estilo ou de retórica – e a variação nos nomes já é, em si, um sinal de que não se trata de um campo muito dogmático. A simples ideia de normatizar o estilo me parece problemática.
O estudo da estilística é um verdadeiro treinamento da percepção e da sensibilidade linguística. Aprendemos a olhar para os textos e a procurar neles algo que vá além da superfície. Ainda que seja um exercício especulativo com grande margem de subjetividade, gosto de pensar numa pergunta norteadora: por que o escritor escreveu como escreveu e não de outro modo?
Ao fazer essa pergunta, o que se espera não é, propriamente, chegar a uma resposta definitiva nem sugerir que o texto deveria ser escrito de outra forma. Antes, é apenas um exercício de alteridade, uma esforço para imaginar-nos na posição do escritor e de sondar os critérios adotados em suas escolhas.
Além disso, os estudos estilísticos nos ajudam a desfazer a ideia de que a preocupação com a forma é mero artificialismo. Ideias corretas, verdadeiras e úteis podem jazer esquecidas numa prateleira empoeirada simplesmente porque lhes faltou o brilho do estilo. Aliás, em texto célebre sobre o assunto, o Conde de Buffon diz com todas as letras:
«As obras bem escritas são as únicas que passarão à posteridade; a grande quantidade de conhecimentos, a singularidade dos fatos e mesmo a novidade das descobertas não são garantias seguras de imortalidade; se as obras que as contêm discorrem somente sobre pequenos objetos, se são escritas sem gosto, sem nobreza, sem gênio, devem decerto perecer; pois os conhecimentos, os fatos e as descobertas são facilmente transmitidos, transportados e, de fato, quando muito são trabalhados por mãos hábeis. Essas coisas estão fora do homem; o estilo é o próprio homem; o estilo não se pode, portanto, nem transmitir, nem transportar, nem alterar; se ele é elevado, nobre, sublime, o autor será igualmente admirado em todos os tempos.»1
José Lemos Monteiro, num livro que merece uma nova edição, trata de como as propriedades articulatórias dos fonemas vêm acompanhadas de uma série de sugestões emocionais:
«A classificação [das vogais] em graves e agudas possibilita a diferenciação das tonalidades e dos tipos de som. Enquanto os ruídos estridentes são bem marcados pelo /i/ (grito, tinir, bem-te-vi, assobio etc.), os surdos são sugeridos pelas vogais posteriores fechadas (estrondo, bomba, marulho, rumor, murmúrio).»2
Depois de apresentar o triângulo das vogais, que mostra que o /a/ é a vogal média, articulado com a boca bem aberta, e que as vogais anteriores (/é/, /e/, /i/) são agudas e as posteriores (/ó/, /o/, /u/) são graves, ele cita versos de Raimundo Correia e Camões para exemplificar como tal classificação é sugestiva quando em uso:
«No verso "Raia sanguínea e fresca a madrugada", percebe-se que a descrição do surgimento da madruga é ilustrada pelo abrimento crescente das vogais, do /i/ ao /a/, a mesma escala que se constata no decassílabo camoniano "Aquela triste e leda madrugada...".»3
Depois dos exemplos, Monteiro sistematiza:
«Pode-se [...], com base nas propriedades articulatórias, estabelecer certos tipos de visualização determinados pelas vogais, o que se confirma através de inúmeros exemplos:
A – amplitude, iluminação: paz, claridade, mar, alvorada, formidável, colossal, felicidade, imensidade etc.
I – estreitamento, pequenez, agudeza: fino, mínimo, espinho, tico, belisco, grito, frio, arrepio, apito, colibri etc.
O – formas arredondadas: roda, gordo, balofo, ovo, olho, bola, sol etc.
U – fechamento, escuridão: túmulo, sepulcro, luto, gruta, furna etc.»4
Ainda que se possam fazer críticas ao esquema proposto por Monteiro, uma coisa é inegável: prestar atenção a esse aspecto aguça a nossa sensibilidade linguística, acrescenta uma camada de significado aos textos que lemos, ensina-nos a ler com os sentidos despertos – visão, audição, tato, olfato, paladar, imaginação... Tudo é mobilizado pelos textos.
Algo parecido também pode ser feito com as consoantes (e Monteiro o faz): fonemas oclusivos como /p/ e /b/ sugerem explosões e ruídos abafados, como em bomba e pancada. Fonemas fricativos como /f/ e /v/ sugerem sopros, como em vento, vendaval, furacão e tufão. O que acontece no plano da forma reforça a própria ideia que se pretende transmitir.5
Essa relação de reforço não se dá apenas em termos fonéticos. Numa gradação de tamanho, por exemplo, podemos dizer «um palácio grande, imenso, gigantesco» e o próprio aumento das sílabas a cada termo apresentado nos dá a sensação de que o palácio cresce diante de nossos olhos.
Os exemplos poderiam multiplicar-se. Meu desejo, por ora, é apenas despertar o interesse por esse campo de estudos e mostrar que a estilística detém um excelente ferramental para educar a nossa sensibilidade linguística. O campo da estilística não é o do certo e do errado, mas o da experimentação: o que acontece se eu disser assado e não assim? Será que cabe uma inversão aqui? Uma elipse pode conferir concisão e sutileza ao texto? Essa construção realmente funciona para o fim que tenho em mente?
Texto incluído em 24 de novembro de 2024 no mural Língua e Tradição, disponível no Facebook.