A repetição de dois sinais de dois pontos na mesma frase é ou tem sido possível, pelo menos, em textos literários, embora se trate de um uso muito marginal que a maioria dos prontuários, das gramáticas de referência ou dos guias gramaticais não chega a mencionar1. Há, no entanto, algumas pistas históricas que permitem um juízo normativo mais consistente.
Comecemos por quem considera que a norma atual já não aceita o uso em questão. Tereza Moura Guedes, em Falar Melhor, Escrever Melhor (Lisboa, Seleções do Reader's Digest, 1991, p. 122), assinala-o como alternativa ao ponto e vírgula em certos textos oitocentistas:
"O emprego deste sinal [dois pontos] é dos que mais têm variado com os tempos e as modas. Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, por exemplo, empregavam-no em vez do ponto e vírgula. Abster-nos-emos, no entanto, de transcrever passagens deste autores que exemplificariam essa utilização, dado tratar-se de textos do século XIX. É apenas a norma actual que nos deve preocupar."
Esta posição encontra apoio em M. Said Ali, que, na sua Gramática Secundária da Língua Portuguesa (São Paulo, Edições Melhoramentos, 1965, pág. 232), declarava (mantenho a ortografia original):
“Antigamente dava-se aos dous pontos aplicação mais lata. Ainda nas obras de Herculano vemo-los empregados frequentemente; mas na maioria desses casos preferimos colocar ou ponto e vírgula ou ponto final.”
Contudo, a repetição de dois pontos na mesma frase não é exclusiva de autores do século XIX. Com efeito, Manuela Parreira e J. Manuel de Castro Pinto, no Prontuário Ortográfico Moderno (Editorial Asa, 1985, p. 182), consideram correta a ocorrência de dois grupos de dois pontos na mesma frase, dando exemplos:
«Em escritores já considerados clássicos, ou até em modernos, aparecem por vezes, com bom gosto e justeza de aplicação, dois grupos de dois pontos na mesma frase:
Sacudiu o avental desceu ao quarto de Luísa: o seu olhar esquadrinhador avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da despensa: podia subir, beber um trago de bom vinho, engolir dois ladrilhos de marmelada…
Eça de Queirós, O Primo Basílio
Depois deixei de a ver: quando uma outra vez a encontrei, ela falava-me como se eu mal a conhecesse: decerto a nossa entrevista, confirmo-o hoje, recordando o que depois aconteceu, tinha acabado para sempre.
Vergílio Ferreira, Aparição»
Se sobre o exemplo de Eça de Queirós pode recair a suspeita de a pontuação reproduzir um uso que já não vigora, a citação de Vergílio Ferreira, que é mais recente, põe em dúvida as afirmações de Tereza Moura Guedes e de M. Said Ali. Na verdade, Vergílio Ferreira (1916-1996), autor do romance Aparição, publicado em 1959, também utilizou «os dois pontos dentro dos dois pontos» e não está assim tão afastado da nossa contemporaneidade. Não é, pois, de excluir que o escritor tenha pontuado assim por intenção estilística, fazendo eco da escrita oitocentista; por outro lado, a consulta da 30.ª edição de Aparição, publicada em 1996 com a chancela da Bertrand Editora, mostra que essa repetição, se era erro, continuava por corrigir não há muito tempo. Como explicarei mais adiante, não me parece ser esta a razão, pelo infiro que, ainda em meados do século XX, não se encarava a repetição de dois pontos na mesma frase como um claro erro de pontuação.
Poderia objetar-se que as ocorrências de «os dois pontos dentro de dois pontos» mais não são do que o resultado de distração autoral, aliada à negligência de muitos editores. Mas a ocorrência do uso em questão em diferentes autores, ao longo de mais de cem anos, em livros publicados em diferentes casa editoras, sugere mais a reprodução de um padrão do que um lapso à espera de um bom revisor. Com efeito, as edições das obras de Eça apresentam várias ocorrências do caso em apreço, entre elas, a apresentada pelo consulente:
(1) “Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, ferverosamente, ataquei aquelle caldo.”
A abonação em (1) é retirada da página 213 da 1.ª edição (póstuma) de As Cidades e as Serras, datada de 1901 (digitalização disponível no arquivo do “site” da Biblioteca Nacional Digital http://purl.pt/234/3/l-5818-v_PDF/l-5818-v_PDF_08-G-R0600/l-5818-v_0000_anterrosto-xxiv_t08-G-R0600.pdf, consultado em 26/04/12). É curioso verificar que, muitos anos depois, a edição que Helena de Cidade Moura realizou nos anos 70 do século passado para a editora Livros do Brasil, baseando-se quer nos manuscritos queirosianos quer na 1.ª edição (póstuma) de 1901, também não altera a pontuação desta curta passagem. Se este exemplo fosse isolado, facilmente se diria que a Helena Cidade Moura escapou um erro de Eça de Queirós. Mas não é assim.
Entre outras publicações oitocentistas que atestam a repetição de dois pontos na mesma frase2,2 assinale-se a edição de 1854 de Os Mistérios de Lisboa de Camilo Castelo Branco (1825-1890):
(2) «Esta resposta fez-me corar. Olhei a fysionomia delle: era sempre a mesma fysionomia: severa e fria, triste e um não sei que de desprezadora.»
Camilo Castelo Branco, Mistérios de Lisboa, tomo I, edição de 1854 (cf. digitalização do tomo I desta edição Biblioteca Nacional: http://purl.pt/21823/2/res-4001-p/res-4001-p_item2/res-4001-p_PDF/res-4001-p_PDF_24-C-R0150/res-4001-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf, consultado em 21/04/2012)
Acontece que, nas Obras Escolhidas de Camilo Castelo Branco, recolha publicada pelo Círculo de Leitores em 1981, se mantém inalterada a pontuação de 1854. O responsável pela edição, Alexandre Cabral, não comenta os critérios seguidos na edição do texto, apenas se depreendendo que a ortografia foi atualizada; a pontuação manteve-se como no original, pelo menos, no exemplo em discussão.
Outro caso encontra-se nas obras de Almeida Garrett, em cujas Memórias Biográficas, publicadas em 1881 por Gomes de Amorim (pág. 301; texto digitalizado disponível em http://ia600202.us.archive.org/16/items/garrettmemoriasb01amoruoft/garrettmemoriasb01amoruoft_bw.pdf, consultado em 26/04/12), ocorre uma frase pontuada do seguinte modo:
(3) É uma hora da tarde: estâmos a salvo: ancorámos na angra de Portland.
Seja (3) a imagem fiel da pontuação dada por Garrett ou a marca da intervenção de Gomes de Amorim nos finais do século XIX, parece-me que a probabilidade de, aí, a repetição de dois pontos resultar de um engano não poderá ser maior do que a de o exemplo atestar um uso intencional, que também se acha em Eça e em Camilo. Acrescente-se que, à semelhança das edições mais tardias já referidas, uma edição de 1983 (Obras Completas de Almeida Garrett, Lisboa, Círculo de Leitores) deixa intocada a pontuação da frase impressa um século antes.
Estas observações levam-me a propor que a prática dos «dois pontos dentro de dois», aqui brevemente documentada, terá tido alguma voga entre escritores e editores dos séculos XIX e XX, sem que tal tenha sido objeto de censura normativa. Não creio que se trate da transmissão ou da coincidência de vários lapsos por parte dos escritores e editores atrás mencionados, porque mesmo as fontes normativas que reprovam a repetição de dois pontos na mesma frase concedem que esse uso é característico de certa época.
Em suma, o facto de, em meados do século XX, um texto de Vergílio Ferreira também apresentar o uso em referência indica que se trata — ou tratava — de uma possibilidade estilística do código literário, ainda que alguns autores normativos já a considerassem antiquada. Quem hoje quiser declarar sem hesitações que é incorreta a repetição de dois pontos na mesma frase deve reconhecer ao menos que está a tomar uma decisão normativa inovadora que penaliza não um lapso, mas um uso provavelmente circunscrito no tempo a um tipo de texto.
1 Este uso não se encontra comentado nas seguintes obras: Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1985; Rodrigo de Sá Nogueira, Guia Alfabético de Pontuação, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1989; Vasco Botelho do Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958; Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2002. Agradeço a Eunice Marta e a Miguel Moiteiro o apoio prestado no acesso às obras de Sá Nogueira e Botelho do Amaral.
2 A identificação dos exemplos a seguir discutidos deve-se à consulta do blogue Assim mesmo, http://letratura.blogspot.pt/2010/09/dois-pontos-repetidos.html de Helder Guégués.
3 Em francês, desaconselha-se a repetição de dois pontos, conforme se lê em http://www.la-ponctuation.com/deux-points.html (“site” consultado em 26/04/2012):
«Remarque :
On évitera fortement de répéter les deux-points dans une même phrase soit en reformulant soit en les remplaçant le cas échéant par « car » ou « parce que ».» [tradução livre: «Deve evitar-se completamente a repetição de dois pontos numa mesma frase quer reformulando quer, se for caso disso, substituindo-os por “já que” ou “porque”].