« (...) [E]u poderia afirmar que o ponto final tem quatro utilidades principais – as quais não se resumem a encerrar formalmente uma ideia num período para então iniciar outro. (...)»
Quando aprendemos a escrever começando do básico, assimilamos os sinais de pontuação em termos bastante simplificados: a vírgula é uma pausa, o ponto e vírgula é uma pausa mais forte, e o ponto final encerra o período.
Contudo, conforme vamos conhecendo textos mais complexos, acabamos notando que os sinais podem ser empregados com intenções mais vastas, pensando-se na expressividade e em determinada sensação que o escritor deseja gerar no leitor.
Com o ponto final, não é diferente.
Você pode até pensar que a multiplicação desse sinal é coisa moderna, especialmente na escrita jornalística e publicitária. Ocorre, porém, que escritores mais antigos também souberam empregar o ponto final e períodos breves para causar certos efeitos no texto.
Dito isso, eu poderia afirmar que o ponto final tem quatro utilidades principais – as quais não se resumem a encerrar formalmente uma ideia num período para então iniciar outro.
Devido ao tamanho necessário para desenvolver os argumentos, citarei duas dessas utilidades hoje, e as outras duas numa próxima publicação.
1) O PONTO FINAL INTENSIFICA A DRAMATICIDADE
Isso acontece principalmente no início e no fim de um parágrafo (o que não impede de suceder no meio, embora seja menos usual).
Observe como frases mais curtas, marcadas pelo ponto final, vindo no início ou no fim de um parágrafo, são capazes de intensificar o drama.
O exemplo é de Alexandre Herculano:
«“Valentes mancebos – exclamou – hoje a Espanha vai ser salva por nós! Vede – acrescentava, sorrindo e falando com os guerreiros que o cercavam, muitos dos quais haviam condenado a sua arriscada confiança na generosidade dos filhos de Vítiza: — vede como eles voam contra os africanos! Quando um grande risco ameaça a pátria não há ódios entre os godos: todos eles são irmãos, porque todos eles são filhos desta nobre terra de Espanha.”
«E o quingentário que voltava gritou de longe: — “Somos traídos!”.
«Roderico empalideceu. A certeza da vitória tinha-se desvanecido.»
O próprio capítulo do trecho acima termina nesse último parágrafo, que não passa de uma linha. É nítido o drama: está havendo um conflito, o personagem Roderico estimula os guerreiros crendo na vitória, há clamor, há esperança…
Até que alguém simplesmente aparece e afirma haver uma traição.
O narrador poderia ter elaborado muito mais a partir daí, mas não — simplesmente encerra o capítulo com duas afirmações bem curtas, as quais condensam em si todo o drama e excitação dessa grave cena.
Roderico, que estava tão cheio de esperança, empalideceu. Foi-se água abaixo a certeza da vitória.
Ponto. O leitor fica pasmado e deseja logo passar para o próximo capítulo.
2) O PONTO FINAL EVIDENCIA UMA IDEIA
É comum também que trechos mais breves, marcados pelo ponto final, evidenciem uma ideia — a qual pode ser desenvolvida em períodos maiores.
Primeiro o autor joga a ideia “na cara” do leitor, forte, brusca, para depois desenvolvê-la com mais calma e detalhe.
Euclides da Cunha fazia-o bastante em seus textos:
«Mas repousavam alguns minutos breves.
«Um estampido atroava na igreja nova, e viam-se-lhe sobre as cimalhas fendidas, engrimponados nas pedras vacilantes, vultos erradios, cruzando-se, mal firmes sobre escombros, correndo numa ronda doida. Tombavam-lhes logo em cima, revessadas de todos os trechos artilhados, lanternetas desabrolhando em balas. Não as suportavam. Desciam, em despenhos e resvalos de símios, daqueles muradais. Perdiam-se nos pardieiros próximos ao santuário. E ressurgiam, inopinadamente, junto de um ponto qualquer da linha. Batiam-no, eram repelidos; atacavam as outras trincheiras anexas, eram repelidos; caíam sobre as que se sucediam, e prosseguiam no giro, arrebatados na rotação enorme dos assaltos.»
Veja que a primeira parte é um parágrafo inteiro de apenas uma linha: simplesmente «Mas repousavam alguns minutos breves».
Será que o narrador nos diria apenas isso? Não: ele prossegue depois, num parágrafo bem maior, para explicar por que o repouso era breve, descrevendo todo o conflito do contexto.
O parágrafo anterior, curto e marcado pelo ponto final, serviu quase como um título, uma introdução, algo para chamar a atenção do leitor ao que se seguiria.
Desde logo, é interessante reparar que essas funções do ponto final não são exclusividade da literatura ficcional (embora, é claro, apareçam com mais frequência em tais gêneros).
Seja em textos acadêmicos, seja no meio corporativo, seja em qualquer outro ambiente, a pessoa que escreve pode se valer do ponto final para dar mais ênfase ao que afirma, para dizê-lo com assertividade — e também pode aplicar um período breve para ressaltar determinada ideia e desenvolvê-la adiante.
Apontamento do revisor brasileiro Gabriel Lago, transcrito, com a devida vénia, do mural Língua e Tradição, no Facebook, com a data de 20 de abril de 2024.