«(…) Pausadas e simpáticas, sempre cuidadosas com a linguagem, para não cansar ninguém, as vírgulas podem ser autênticas pedradas de oxigénio, após muitas arfadas devido ao caudal discursivo dos escritores (sobretudo daqueles que despejam palavras pela boca como um chafariz). (…)»
As suas emoções e intenções dependem daquilo que ele consegue ir buscar aos sinais ortográficos, das escolhas que faz e dos caminhos que segue em matéria de pontuação.
A pontuação é responsável pelos diferentes tempos e ritmos narrativos das histórias e das narrativas, é ela que lhes dá mais vida ou ênfase, lhes confere maior ou menor expressividade.
Um texto só funciona no plano estético se mobilizar de maneira harmónica e coordenada as vírgulas e os pontos, as reticências e os parênteses, os travessões e os parágrafos, os pontos e vírgulas e os dois pontos, etc.
A estrutura de um texto é a sintaxe, a sintaxe é o sentido, o sentido é a pontuação e esta é a alma de um autor (como dizia Machado de Assis, na sua crítica aos dois primeiros romances de Eça de Queirós, «na arte só têm importância os que criam almas, e não os que reproduzem costumes. A arte é a história da alma»).
Todos os sinais de pontuação podem ser explicados pela psicologia e pela fisiologia.
As vírgulas, múltiplas e tremendamente minuciosas, têm um efeito calmante, servem para introduzir pequenas paragens na leitura e permitir aos leitores encherem de ar os pulmões. Pausadas e simpáticas, sempre cuidadosas com a linguagem, para não cansar ninguém, podem ser autênticas pedradas de oxigénio, após muitas arfadas devido ao caudal discursivo dos escritores (sobretudo daqueles que despejam palavras pela boca como um chafariz). O sistema nervoso e cardiorrespiratório dos livros depende delas.
O ponto final, por seu lado, tem algo de fixo e de permanente, transmite uma sensação de fim inapelável. É como a cabeça de um prego que remata as frases e as encerra em sistemas totalizantes, isolando-as umas das outras para reforçar a coerência neurótica do escritor e eliminar tudo o que o possa pôr em causa.
Ou como alguém que come devagar, pousa os talheres, reflecte, toma alento, pensa e só depois continua.
As reticências, que multiplicam por três o ponto final, expressam a ideia oposta: consistem ora em deixar incompleta uma frase, como quem não quer dizer tudo o que sabe e pretende chamar a atenção para o que se silenciou; ora em cortar a frase a meio, antes do tempo, para que sejamos nós a completá-la, gerando assim uma cumplicidade entre o escritor e o leitor.
No final das orações, as reticências prologam misteriosamente as frases, apontam-nas para lugares invisíveis onde todas as digressões, suposições e divagações são permitidas; convidam à dúvida, transmitem a impressão de que a frase voou para sítios onde não estamos, mas cuja presença se faz sentir na história, actuando e produzindo efeitos, tanto mais fortes quanto nós os ignoramos.
Mas utilizadas no início, parece que as frases surgem do nada, de lado nenhum ou que são a continuação de algo que desconhecemos.
A ambição de algumas reticências é reproduzir as vacilações da oralidade, mostrando que deixamos muitas vezes as ideias irremediavelmente incompletas, que há muitas frases que iniciamos e que depois terminamos doutra maneira, como se nos tivéssemos arrependido da sua formulação original.
As reticências segmentam o ritmo do discurso em pequenas unidades separadas, para o leitor repousar em breves – mas significativos – momentos. Porém, essa é a cadência das conversas tal como mentalmente as imaginamos, não como as ouvimos. São, por isso, uma recriação do discurso falado, ou seja, não o imitam e reproduzem tal-qualmente. Os pontos de suspensão (reticências) remetem para a figura clássica da retórica denominada «aposiopese», a qual pode ser definida, parafraseando Moisés no Dicionário de Termos Literários, como uma interrupção súbita da cadeia sintáctica, que suspende um pensamento já iniciado. Veja-se a cena XIV de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, no entre o Romeiro e Madalena, quando esta diz, ansiosa: «Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem, esse homem... Jesus! esse homem era…esse homem tinha sido…».
O significado das reticências é elástico. Tanto podem dizer que o escritor não quis adiantar raciocínios ou surpresas, que pretendeu dar ênfase às palavras, que se apercebeu de que estava prestes a dizer mais do que desejava e que a escrita tomou uma direcção imprevista, ou porque se sentiu dominado por sentimentos contrapostos: «Quero que a minha filha seja ministra, no entanto...» (ou seja, quero e não quero que ela seja ministra).
O romantismo, movimento artístico, político e filosófico que se caracterizou pela expressão livre das emoções do espírito, sem quaisquer barreiras morais, teve nelas um dos seus principais aliados ortográficos.
O uso das reticências é notório, por exemplo, em Louis-Ferdinand Céline, autor da famosa Viagem ao Fim da Noite e de Morte a Crédito (traduzidos por cá, respectivamente, por Aníbal Fernandes e Luiza Neto Jorge).
Guiado por outros objectivos, Céline subverteu o seu uso tradicional, deu-lhe um outro aproveitamento, abriu caminho para outras sugestões e analogias.
As suas frases, marcadas por uma copiosa aglomeração de reticências, são completas e independentes, tão peculiarmente completas e independentes que adquirem ressonâncias excepcionais, semelhantes a rajadas de metralhadora disparadas de dentro para fora, de fora para dentro, em todas as direcções (como se Céline escrevesse debaixo da influência da bala que, depois de se ter alojado na sua cabeça, num dos campos de batalha da Primeira Grande Guerra, ali ficou a ecoar até ao final dos seus dias). Ou como um telemóvel que, insidioso, vibra no bolso das calças.
Sobretudo a partir de Morte a Crédito (1936), tornou-se impossível não reparar nas reticências de Céline, nos intervalos que elas criam, na tensão que estabelecem, na urgência que inculcam em cada frase individual, sincopando a prosa diferentemente dos outros escritores.
Massificadas, tal como são praticadas hoje nas mensagens electrónicas, têm um efeito de rotina e perderam significado. À semelhança dos pontos de exclamação, que deixaram de exprimir incredulidade, provocação, revolta ou iracúndia, as reticências tornaram-se recursos vazios de escritas cheias de efeitos fáceis.
Se os travessões parecem cicatrizes de cesarianas (ou lábios constritos), os parênteses em semicírculo são dois sorrisos que entreabrem, não a boca e as bochechas, mas as frases, prenunciando um acolhimento cordial ou irónico. Quando abrem e são rectos, parecem bigodes em formato de ferradura, preenchendo as laterais do queixo.
A verdade, porém, é que somos muito injustos com os parênteses.
Porque os parênteses, representados graficamente através de ( ), têm sido objecto de escárnio e de incompreensão, o fardo de todos os malditos.
Segundo artigo do autor publicado na revista Sábado do dia 5 de agosto de 2021 sobre a pontuação. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.