«(...) Qualquer ação para impor entraves ou transformações no idioma por meio de decreto será ineficaz. (...)»
A Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou o Projeto de Lei que proíbe o uso de linguagem neutra nas escolas do município. Pura perda de tempo e falta do que fazer.
A lei é inconstitucional (o Supremo Tribunal Federal já deixou claro que diretrizes e bases da educação são de competência da União). E tentar proibir que se adote a linguagem neutra, como propõem os milicianos do idioma, é tão inútil quanto querer enfiá-la goela abaixo, como pretendem os guerrilheiros da causa.
Lei similar já foi derrubada em Rondônia e logo será também no Paraná e em Santa Catarina, bem como em Manaus e Porto Alegre. Igual destino terão os projetos em tramitação em cinco estados, cinco capitais e no Distrito Federal.
Qualquer ação para impor entraves ou transformações no idioma por meio de decreto será ineficaz. Pelo simples motivo de que não é assim que a coisa funciona. A língua não muda de fora para dentro ou de cima para baixo: ela muda porque nós, os falantes, mudamos. Nada impedirá a língua de fluir (não há barragem capaz de contê-la); nada a desviará arbitrariamente de seu curso. (Reforma ortográfica é outro departamento.)
Será que alguém acredita que «professorus» e «alunes» passarão, «todes» juntes, a se expressar de uma forma artificial, contraintuitiva, só porque paladinos da justiça resolveram embaralhar gênero biológico e gênero gramatical? Escolas do Brasil inteiro tentam, há décadas, sem sucesso, ensinar que a conjugação na primeira pessoa do singular do futuro do subjuntivo do verbo ver é «quando eu vir». Que há quatro porquês. Que não existem «menas» ou «houveram problemas». Que vocativo leva vírgula. E... nada.
Sim, a língua mudará. Na nossa geração, trocamos chofer por motorista, menu por cardápio, perdemos a vergonha de começar frases com pronome oblíquo. «Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta», escreveu Cecília Meireles, numa época em que o usual era dizer poetisa. Poeta, de dois gêneros, causaria estranheza a nossos avós: para nós, soa naturalíssimo. Assim como «a travesti», que durante muito tempo foi ignorada, apesar de aplicável.
Caetano Galindo em seu ótimo Latim em pó:
«As línguas mudam. O tempo todo surgem modos alternativos de dizer alguma coisa, formas mais velhas vão desaparecendo, destronadas por novas variantes. E essa mudança, assim que começa a ocorrer, é sempre percebida como um desvio, como aberração a ser evitada a qualquer custo.»
Os nobres edis e parlamentares, ocupados em imobilizar a língua, e estus abnegades ativistes, empenhades em expurgar do idioma um suposto laivo machista, precisam conhecer o grande dr. Castro Lopes, que, no final do século XIX, fez o que pôde para expulsar do português os estrangeirismos (futebol, turista, abajur, greve) substituindo-os por neologismos puro-sangue (ludopédio, ludâmbulo, lucivelo, operinsurreição). Não rolou.
Em compensação, ele emplacou calçada, cogumelo, retroagir, postar, cardápio. Sem lei obrigando ou proibindo: apenas porque fizeram sentido para os falantes.
«O povo é o inventalínguas», escreveu Haroldo de Campos. E língua não tem cabresto. Nem nunca terá.
Cf. Os brasileiros não-binários que lutam pelo reconhecimento do gênero neutro: «Não me considero homem, nem mulher» + Abrir espaço para linguagem neutra é fazer da escola um lugar mais acolhedor + A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?
Artigo do arquiteto e escritor brasileiro Eduardo Affonso transcrito, com a devida vénia, do jornal O Globo do dia 29 de abril de 2023.