Quem limpa, arranja e dá esplendor ao inglês, uma das principais línguas sem academia - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Quem limpa, arranja e dá esplendor ao inglês, uma das principais línguas sem academia
Quem limpa, arranja e dá esplendor ao inglês,
uma das principais línguas sem academia
O bom uso linguístico entre a população anglófona

«No fim de contas, não há tanta diferença com o que acontece nas línguas que têm academia.»

  

ingles_imperio.jpgEm 1780, quase duas décadas antes de se tornar o segundo presidente dos Estados Unidos, John Adams [1725-1826] enviou uma carta ao Congresso das Treze Colónias (o país estava em plena formação e decorria a guerra de independência da Inglaterra), na qual expressou a necessidade de uma Academia Americana de Língua Inglesa. Citou as academias francesaitalianaespanhola como grandes exemplos de sucesso, e achou surpreendente que nenhuma das propostas para uma instituição semelhante na Inglaterra se tivesse concretizado. Esse vazio, acreditava Adams, não deveria ser varrido pelo novo país. O pedido nem sequer foi debatido.

Não foi a primeira e não seria a última vez que alguém propôs a criação de um órgão oficial para «consertar e melhorar» – palavras de Adams – o inglês, tanto de um lado quanto do outro do Atlântico. No entanto, porque foi considerado desnecessário ou até mesmo antiamericano (no caso americano) intervir na maneira como as pessoas falavam ou escreviam, todas as propostas acabaram por dar em nada. Segundo o Ethnologue, o inglês é a língua mais falada no mundo (contando com falantes cuja língua materna é outra), e, mesmo assim, é uma das poucas línguas reconhecidas por um ou mais Estados que não possui seu próprio equivalente ao Real Academia Espanhola.

As academias de línguas foram uma ideia europeia que causou furor entre intelectuais e estudiosos dos séculos XVII e principalmente XVIII, quando começaram a florescer no continente. A primeira foi a Accademia della Crusca, nascida em Florença em 1583. Esta foi seguida pela Académie Française em 1635. A grande explosão ocorreu no século XVIII: a Real Academia Espanhola nasceu em 1713; a Academia das Ciências de Lisboa, com secção dedicada à língua, em 1779; a Academia Russa em 1783, a Sueca em 1786...

Nascidas sob o manto protetor das monarquias europeias, quase todas as academias fundadas no século XVIII seguiram o modelo francês e buscaram algo semelhante ao que era missão da Académie Française: «Dar regras seguras à nossa língua e torná-la pura , eloquente e capaz de lidar com as artes e as ciências.» A ideia de pureza também estava por trás da Accademia della Crusca (crusca significa «farelo» e se refere à peneiração do cereal; eles também queriam examinar a língua em busca de impurezas).

Atualmente, a maioria destas instituições mantém o seu caráter oficial e mantém-se unida às monarquias dos países onde ainda existem. Essas academias têm missões de investigação e  promoção, e afirmam ser descritivas ao invés de prescritivas. Para as pessoas comuns, eles são a autoridade a quem recorrer quando têm uma dúvida ou um conflito no meio do jogo de tabuleiro. A quem os falantes de inglês recorrem? Quem zela pela grafia e pureza de uma língua com quase 900 milhões de falantes não nativos?

Escolha a sua própria autoridade linguística

Fiona McPherson, editora sénior do Oxford English Dictionary (OED), decidiu, já adulta, voltar a estudar alemão, que aprendera na escola, disse ela a Verne por e-mail. Descobriu que muito do que havia aprendido quando criança sobre como escrever em alemão não era mais válido, desde que uma reforma oficial da grafia ocorrera naqueles anos (em 1996). Como falante de um idioma sem RAE, achou isto «fascinante».

O inglês não tem autoridade linguística oficial ou regulador, mas tem instituições às quais os falantes deram esse papel de referência para a elas recorrer. O dicionário em que McPherson trabalha, o OED, é um deles. O editor, que insiste que a Oxford University Press, editora responsável pelo dicionário, não tem o estatuto oficial das academias de outras línguas, acredita que o estatuto de referência que muitas pessoas conferem ao OED possivelmente tenha a ver com a «escala de ambição» e o alcance do projeto desde que começou a tomar forma em 1857, embora sua publicação – por fascículos – só tenha começado em 1884.

«Nenhum outro dicionário ofereceu o mesmo tipo de visão histórica ou uma cobertura tão abrangente do inglês», disse o editor. Além disso, para a criação do dicionário, foram levadas em consideração as pessoas e buscou-se sempre uma abordagem que descrevesse a linguagem «como ela é usada e vivenciada por leitores e falantes», afirma. Ele acrescenta que o papel desempenhado pela «independência editorial e neutralidade do OED» também não deve ser subestimado.

Isto no Reino Unido. Nos Estados Unidos, os dicionários Merriam-Webster são uma das referências linguísticas por excelência do inglês americano, como prova de que também são os editores do dicionário oficial do Scrabble. No entanto, não são as únicas opções. Um exemplo é que nem o jornal britânico The Guardian recorre ao OED nem o The New York Times ao dicionário Merriam-Webster quando precisam de tomar uma decisão linguística que não está incluída no seu livro de estilo.

«A autoridade para escrever e usar qualquer palavra não incluída no livro de estilo do NYT é a última edição do Dicionário Webster's New World College», explica Phil Corbett, editor de estilos e normas do jornal americano. Apesar do nome, o dicionário é editado pela Houghton Mifflin Harcourt e não pela Merriam-Webster. No The Guardian, por sua vez, a referência externa é o Dicionário Collins. Kirsten Broomhall, editora de produção do jornal britânico, garante a Verne por e-mail que é aquele o dicionário seguido e não outro, porque, quando um membro da equipa do livro de estilo investigou as opções há alguns anos, concluiu que o Collins era o melhor: tinha uma ordem mais sensata, mais palavras, e era o que mais facilitava a consulta». Desde então, tem sido este o dicionário de referência ao qual escritores e editores recorrem quando o livro de estilo não oferece a resposta que procuram.

Fiona McPherson, do OED, diz que lhe é difícil opinar sobre a necessidade de instituições oficiais, como academias de idiomas, porque fala um idioma que nunca teve. O OED, aliás, nem mesmo faz recomendações sobre o que considera um "bom uso" da língua. Qualquer palavra que possa «fazer prova do seu uso» é candidata a entrar no dicionário, embora – como a RAE faz no seu dicionário – o dicionário britânico dê orientação sobre a adequação ou não do uso de cada palavra em certos contextos, associando-lhe informação sobre se é coloquial ou ofensiva, por exemplo, ou mesmo «indicando que certas palavras ou usos de palavras não são considerados padrão». Um pouco como o «não recomendado no discurso educado» que a RAE às vezes indica.

Eles também estão atentos ao que outros dicionários fazem, embora seja a sua própria pesquisa linguística e monitorização que motiva as mudanças que fazem ou as palavras que adicionam à sua publicação. The Guardian e The New York Times dizem um pouco a mesma coisa: para seus livros de estilo, eles levam em consideração as mudanças de autoridades linguísticas externas, mas no final é sua própria observação da língua que eles levam em consideração.

Quando as academias não chegam na hora

Não se estranha que muitas vezes sejam os meios de comunicação que tomam decisões sobre os usos ou formas de escrever uma palavra, intervenção que também acontece em línguas com instituições linguísticas oficiais. Estando tão próximos do presente, os media também são frequentemente os primeiros a atender a novas necessidades que não podem encontrar nem nos seus livros de estilo nem na autoridade linguística de referência. 2020 é um bom exemplo. Phil Corbett, do The New York Times, explica que a última grande revisão do manual de estilo ocorreu em 2013, mas as diretrizes e recomendações são constantemente atualizadas. No início deste ano, por exemplo, adicionaram as entradas coronavirus e covid.

Algo semelhante diz Kirsten Broomhall do The Guardian. No jornal não há um editor dedicado exclusivamente ao guia de estilo – disponível, aliás, no site –, mas uma equipa de editores de produção revê as recomendações quando necessário. A alteração pode ser feita a pedido da equipa editorial, porque os leitores «levantam uma dúvida sobre o estilo» ou por causa de alguma notícia de última hora em que existem várias maneiras de escrever o nome de um lugar ou de uma pessoa e «temos que escolher um». A equipa discute o assunto por e-mail (antes da pandemia, faziam-no pessoalmente) e toma uma decisão por maioria.

No fim de contas, não há tanta diferença com o que acontece nas línguas que têm academia. Seguindo o exemplo de 2020, a RAE recomendou inicialmente o uso de COVID em maiúsculas e em feminino, mas muitos veículos de comunicação não seguiram esse modelo. Agora, na atualização do Diccionario de la Lengua Española (DLE) que apresentaram no final de 2020, continua a propor as maiúsculas da sigla, mas já declara que pode ser masculino ou feminino.

Claro, talvez 2020 não deva ser considerado um exemplo de nada: o próprio OED não foi capaz de escolher a palavra do ano e optou por escolher uma série de palavras e expressões em seu lugar. O título do relatório deste ano é Words of an Unprecedented Year (Palavras de um ano sem precedentes). Este «sem precedentes» parece ser a conclusão final.

Não há uma academia da língua, mas há controvérsias: o caso da vírgula de Oxford

1573209704585_o_uso_virgula_necessario_em_diferentes_casos_594d6ac2ea159.jpgUma das principais matérias que as crianças britânicas estudam na escola é, obviamente, o inglês. No Currículo Nacional, documento que detalha o conteúdo educativo a ser ministrado em cada nível, fala-se constantemente do Standard English, ou seja, do inglês padrão. No entanto, não se define claramente o que se entende por esta designação nem se indicam as publicações que podem ser usadas como referência.

A maioria das obras de referência em inglês coincide quanto à ortografia, à gramática e à pontuação quando pertencem à mesma área geográfica. Ou seja, não há muita diferença entre o que dizem as publicações da Oxford University Press, do British Council e da Cambridge University Press, mas isso não significa que o mundo anglófono esteja livre de polêmicas linguísticas. Aquela que tende a despertar mais paixões, o equivalente à grafia de «de mais»/demais, é a chamada Oxford comma, a «vírgula de Oxford».

Trata-se da vírgula que é colocada (ou não) nas enumerações antes da conjunção e do último elemento. Por exemplo, em «Oxford, Cambridge, e o British Council», seria a vírgula antes do e (toma-se a liberdade de a colocar no exemplo, não sem lembrar que não se verifica em português). A maioria dos guias de estilo britânico é flexível quanto ao seu uso, enquanto nos Estados Unidos os seus defensores são a maioria.

Aliás, esta não é uma questão menor: em 2014, três camionistas da empresa de laticínios Oakhurst Dairy de Portland (Maine), processaram a entidade patronal, porque, segundo eles, esta lhes devia quatro anos de trabalho em horas extraordinárias. Os camionistas e a empresa de laticínios fizeram uma interpretação diferente do que determina a legislação estadual, que diz que cada hora extra trabalhada deve ser paga como uma hora e meia, com uma série de exceções. Oakhurst Dairy entendeu que os motoristas eram a exceção; os trabalhadores, não.

As exceções eram «enlatamento, processamento, preservação, congelamento, secagem, armazenamento, embalagem para envio ou distribuição de» uma série de produtos. Os camionistas entenderam que, como não havia vírgula antes da conjunção ou, o último elemento da enumeração significava «embalagem para embarque ou embalagem para distribuição». Como eles não empacotaram, apenas distribuíram, então não eram uma das exceções. A empresa de laticínios entendeu a distribuição como uma das exceções.

Embora pequena e muito circunscrita, a disputa foi seguida por muitos adeptos da língua de ambos os lados, os defensores e os detratores desta vírgula. Mas não foi alcançado nenhum veredicto de que um ou outro lado pudesse valer-se para sempre como prova de vitória: a empresa concordou resolver a questão pagando aos camionistas cinco milhões de dólares. Assinale-se que o texto da lei passou a ter uma vírgula (ponto e vírgula, na verdade) antes da conjunção ou.

Fonte

Tradução com adaptações dum trabalho publicado em língua espanhola, em 1 de dezembro de 2020, em Verne, página associada ao diário espanhol El País.

 

Sobre o autor

Jornalista espanhola freelance que escreve em diferentes publicações sobre relações humanas, língua, tecnologia e cultura. Tem colaborado com diversas agências de comunicação e é cofundadora da publicação digital Disquecool,em língua galega. Escreve em Verne, página associada ao jornal El País.