«(...) Os apostos vêm sempre entre vírgulas, porque são sintagmas que se podem escusar ou mover para outro lugar. (...)»
Isto de vírgulas é complicado. Quero aqui falar de um erro comum e pouco notado, que, ao contrário de muitos erros frequentemente criticados, tem implicações importantes em termos de sentido: pôr entre vírgulas sintagmas ou orações restritivas. Está mal. Só os sintagmas apositivos é que se põem entre vírgulas. Ena, tantos palavrões técnicos. Importa-se de trocar isso por miúdos?*
Um modificador restritivo de um nome especifica a que(m) é que o nome se refere. Se eu tiver duas irmãs, a expressão nominal «a minha irmã» pode referir qualquer das duas. Mas se, das duas, há uma «que mora na Suíça» e outra «que mora em Portugal», estes sintagmas podem servir para especificar de qual das duas estou a falar: «A minha irmã que mora na Suíça faz anos amanhã.» São estes modificadores restritivos os que não se escrevem entre vírgulas.
Já um modificador apositivo diz alguma coisa extra daquilo que é referido pelo nome, sem por isso o definir por oposição a outras coisas ou seres designadas pelo mesmo nome. Se eu só tenho uma irmã e ela faz anos amanhã, direi «A minha irmã faz anos amanhã». E posso, claro está, acrescentar a esta afirmação alguma informação adicional sobre a minha irmã, por exemplo, que ela mora na Suíça: «A minha irmã, que mora na Suíça, faz anos amanhã.» Este tipo de frases é muito raro na comunicação oral, pelo que não há normalmente confusão entre os dois tipos de frase na oralidade (seria mais natural qualquer coisa como «A minha irmã faz anos amanhã. Mora na Suíça, essa minha irmã.»), mas ocorre na escrita, porque na escrita há tendência a condensar e concentrar a informação. E os apostos vêm sempre entre vírgulas, porque são sintagmas que se podem escusar ou mover para outro lugar.
Agora, nem todos os modificadores restritivos são orações relativas, como nos exemplos acima. Mas as regras de uso das vírgulas são as mesmas. Escrever, por exemplo, falando de Herman Melville que «Alguns veem no seu livro, The confidence man, uma sátira de Henry Ward Beecher» só faz sentido se Herman Melville não tivesse escrito mais nenhum livro, o que não é certo; e escrever que «O considerado entomologista de Harvard, E.O. Wilson, fez notar que, sem, insetos a vida desapareceria da terra», só estaria correto se o E.O. Wilson fosse o único etimologista considerado de Harvard, o que também não acontece.
Notem que nem sempre o problema deste erro é dar como único o que o não é. Pode também criar outro tipo de alterações do significado da frase onde ocorre. A frase «Alice é uma peça de teatro musicado sobre os conflitos internos do autor, Charles Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário, Lewis Carroll» dá Charles Dodgson como autor de uma peça de teatro cujos autores são de facto Kathleen Brennan e Tom Waits. O que queriam escrever era «Alice é uma peça de teatro musicado sobre os conflitos internos do autor Charles Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário, Lewis Carroll».
Lembro-me de que uma vez tive de pedir esclarecimentos à autora de um relatório que estava a traduzir e em que se afirmava que «os camponeses de Ribauè, que foram apoiados pelo projeto, aumentaram de facto a produção de milho». O projeto destinava-se de facto a apoiar todos os camponeses de Ribauè? Não, não, o projeto tinha como grupo-alvo um número restrito de camponeses do distrito – o que ela queria dizer era «os camponeses de Ribauè que foram apoiados pelo projeto aumentaram de facto a produção de milho», ou seja, restringir o número de camponeses que tinham aumentado a sua produção de milho aos que tinham sido apoiados pelo projeto.
Isto de vírgulas é um bocado complicado...
* Podem ver, por exemplo – e contrastar com a minha – a explicação que dá o Ciberdúvidas da diferença entre os dois tipos de modificadores. Mas encontram muitas outras na Internet.
Texto do tradutor Vítor Lindegaard, que o publicou no seu blogue Travessa do Fala-Só, em 30 de agosto de 2019.