Do Brasil, onde o asseio no uso da língua é discutido vivamente na imprensa, chegam-nos colectâneas de artigos sobre questões de gramática e norma. Em Mal Comportadas Línguas, de Sírio Possenti (Criar Edições, Curitiba, 2000), o autor revela o excesso de zelo na correcção de um cartaz político: o texto do cartaz não tinha pontuação e a revista Veja chamou o (célebre) professor Pasquale para o pontuar, assim:
CHEGA DE BATE-BOCA!
CHEGA DE INSEGURANÇA!
GOVERNADOR COVAS,
VAMOS SALVAR SÃO PAULO!
Mas Possenti propõe outra pontuação, que muda por completo o sentido do texto:
CHEGA DE BATE-BOA,
CHEGA DE INSEGURANÇA,
GOVERNADOR COVAS!
VAMOS SALVAR SÃO PAULO!
Todos conhecemos uma ou outra anedota fundada na relação entre a alteração de pontuação e a metamorfose do texto e, no entanto, as vírgulas e os pontos ainda são vistos como acessórios da escrita. A simples consulta das regras da pontuação não contribui para anular este (mau) juízo.
Veja-se o caso da vírgula. A vírgula emprega-se para apartar um adverbial, um aposto ou um vocativo dos constituintes essenciais da frase (sujeito, verbo, complemento); serve também para segmentar vários elementos de uma enumeração ou para marcar uma fronteira entre a oração principal e a oração subordinada (entre outras funções semelhantes). Pode parecer que a vírgula nada mais faz no texto do que facilitar a leitura e que a falta de uma ou outra não deverá incomodar os leitores de boa vontade.
Pura aparência.
Por exemplo, em «Os dois deputados independentes (…) desviaram verbas das subvenções atribuídas pela Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) para fins particulares.» (Público, 2/5/08) a ausência de vírgula - antes de «atribuídas» e depois do parêntesis - isenta os deputados, pois faz de «fins particulares» uma característica própria de "subvenções".
Agora pense-se no estrago que uma vírgula a menos (ou a mais) pode fazer num qualquer texto normativo...
Cf. 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula
N.E. – O não uso da obrigatória vírgula no vocativo – seja quando ela representa um chamamento, um apelo, uma saudação ou uma evocação* – generalizou-se praticamente no espaço público português, dos órgãos de comunicação social à publicidade .Por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui. Uma incorreção várias vezes esclarecida no Ciberdúvidas – vide Textos Relacionados, ao lado –, assim como noutros espaços à volta da língua portuguesa.
Cf. entre outros registos: Vocativo + Vocativo: uma unidade à parte + O uso da vírgula no vocativo, Vocativo – uma questão de vírgula + A vírgula do vocativo – Exemplos de vocativo no início, no meio e no fim da frase + 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula.
* Por regra, no discurso direto e, geralmente, em frases imperativas, interrogativas ou exclamativas.
Artigo publicado no semanário Sol de 19 de Julho de 2008, na coluna Ver como Se Diz.