«Não mudo nem uma vírgula», isto é, «reitero o que disse sem condescender numa alteração mínima que seja». Cá está outro sinal de que vírgula é frequentemente subestimada.
Veja-se este fragmento de uma notícia, sobre mais um caso revoltante de agressões brutais a crianças: «A mãe do menino, com dois anos de idade, foi igualmente punida (...)» (Público, 3/07/08). Quem leu a notícia percebeu, naturalmente, que a criança tinha dois anos de idade, mas o que está escrito é que é a mãe do menino que tem dois anos de idade. Isto só por causa das vírgulas.
Antes de consultar as regras do uso da vírgula há que perceber o seguinte: aquilo que vemos quando lemos uma frase é uma sequência linear de palavras, mas há uma estrutura hierárquica por detrás dessa combinatória; as palavras organizam-se em grupos que exercem funções gramaticais uns em relação aos outros; por sua vez, dentro de cada grupo é possível apurar elementos que estabelecem esquemas de relação de dependência. A vírgula tem a importante função de marcar, na superfície da frase, o modo como se regem essas relações de dependência.
No texto de uma notícia o uso atribulado de uma vírgula não tem, em geral, consequências imediatas na vida das pessoas. O mesmo não se passa com o texto de uma lei, de um contrato, de um regulamento ou de um auto…
Basta lembrar: no Brasil, milhares de pessoas viveram na expectativa por causa de um vírgula na "lei da aposentadoria".
Por cá, tivemos o caso do «mistério da vírgula dos 120 mil contos»: no princípio da década de 90, a jornalista Helena Sanches Osório disse na televisão que alguém, com poder legislativo, tinha recebido 120 mil contos para alterar uma vírgula num diploma. Quem foi, quem não foi, de que vírgula se tratava… nunca se soube. O facto é que se assumiu como certo que a vírgula podia valer muito dinheiro.
Cf. 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula
N.E. – O não uso da obrigatória vírgula no vocativo – seja quando ela representa um chamamento, um apelo, uma saudação ou uma evocação* – generalizou-se praticamente no espaço público português, dos órgãos de comunicação social à publicidade .Por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui. Uma incorreção várias vezes esclarecida no Ciberdúvidas – vide Textos Relacionados, ao lado –, assim como noutros espaços à volta da língua portuguesa.
Cf. entre outros registos: Vocativo + Vocativo: uma unidade à parte + O uso da vírgula no vocativo, Vocativo – uma questão de vírgula + A vírgula do vocativo – Exemplos de vocativo no início, no meio e no fim da frase + 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula.
* Por regra, no discurso direto e, geralmente, em frases imperativas, interrogativas ou exclamativas.
Artigo publicado no semanário Sol de 26 de Julho de 2008, na coluna Ver como Se Diz.