O crioulo de Querala (sul da Índia) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O crioulo de Querala (sul da Índia)
O crioulo de Querala (sul da Índia)
O fascínio de uma língua indo-portuguesa secular

 « (...) Embora o considerassem extinto, o crioulo ainda é falado em Cananor e marginalmente em Calecute (...)»

 

O crioulo de Querala (Kerala)1, que neste estado indiano se formou como mistura de malaiala e português durante o domínio dos portugueses, está quase extinto, mas ainda tem alguns falantes, afirma o investigador Hugo Cardoso.

No romance Tomb of Sand («Túmulo de Areia»), Geetanjali Shree, vencedora do Booker Prize, faz uma breve referência a certo idioma extinto na ilha de Vaipim (Vypeen), em Querala. Não causa grande surpresa que, em Cochim, primeiro governada pelos portugueses, depois pelos Holandeses e, finalmente, colonizada pelos Britânicos, tenha existido um crioulo – língua formada pelo contacto entre línguas europeias e locais. Mas a existência, no século XX e nos primeiros anos do século XXI, de um crioulo indo-português que ainda pode ter falantes, motiva enorme interesse, especialmente entre aqueles que passaram uma vida inteira em Querala sem ter conhecimento do facto, porque se trata de uma língua circunscrita a pequenas áreas em Cochim, Cananor e Calecute.

Hugo Cardoso é professor de Linguística da Universidade de Lisboa e investiga há muito tempo os crioulos indo-portugueses do Malabar, tendo visitado Calecute (Kozhikode), Cananor (Kannur) e Cochim (Kochi) a partir de 2006, em busca dos últimos falantes do idioma. «Há muito tempo que se sabe da existência de um crioulo de base portuguesa em Querala. Mas, quando comecei o meu estudo, há cem anos que não havia referência publicada a respeito de um crioulo em Querala, e supunha-se, portanto, que a língua tinha desaparecido. Comecei a minha investigação na Índia, em 2004, com um trabalho sobre o crioulo indo-português de Diu. No decurso desta pesquisa, visitei Goa, onde soube que talvez ainda restassem alguns falantes em Cananor ou em Cochim. Decidi, portanto, ir investigar», diz Hugo Cardoso em entrevista à TNM.

Na sua investigação, o linguista descobriu que existiam crioulos de base lexical portuguesa em Cananor, Tellicherry (Thalassery), Wayanad, Mahé (Mahe), Calecute, Kodungallur, Vaipim, Cochim, Alappuzha, Kayamkulam, Coulão (Quilon ou Kollam) e Anchuthengu. Embora o considerassem extinto, o crioulo ainda é falado em Cananor e marginalmente em Calecute, conforme revela o trabalho de campo de Hugo Cardoso.

O investigador português conseguiu entrevistar alguns falantes em Cananor em 2006. No entanto, quando visitou Cochim no ano seguinte, apenas pôde encontrar um único falante do crioulo – William Rozario, morador de Vaipim: «Outros moradores tinham algum conhecimento da língua (expressões, músicas, palavras isoladas), mas só o Sr. Rozario falava fluentemente.» Cardoso continuou a visitar Cochim nos anos seguintes (até 2015) e construiu o que chama de «corpus de gravações». Além de entrevistar os habitantes sobre o vocabulário e o funcionamento da língua, registou frases e fórmulas curtas, principalmente de Cochim e Cananor.

Como se desenvolveu o crioulo de Querala

No seu estudo, Hugo Cardoso assinala que o português e o malaiala são as fontes mais importantes de estruturas gramaticais dos modernos crioulos malabares. Defende a hipótese segundo a qual quem atuava sob a égide de Portugal – nas fileiras militares, havia outros europeus em número superior ao dos portugueses – tinha de aprender português, transformando-se em falante não nativo, usando o português como segunda língua.

«Reforça-se a hipótese de se ter desenvolvido na região um pidgin de base portuguesa (um código linguístico não nativizado, simplificado para fins específicos e limitados)», sustenta o investigador, que sugere que o elemento português encontrado nos crioulos malabares não tinha de vir apenas de falantes nativos, mas também dessas variantes de segunda língua (do português pidginizado). Uma fase pidgin é aceite por alguns estudiosos como pré-condição para a formação de um crioulo.

No estudo de Hugo Cardoso, também se considera a possível influência das línguas africanas sobre o crioulo, pois um número significativo de africanos veio para a Índia como mão de obra escrava. «Algumas palavras presumivelmente de origem africana estão em textos indo-portugueses, incluindo batuque (um tipo de tambor), calumba (uma planta medicinal), machila/machira (espécie de liteira).» A conversão ao catolicismo é mencionada como outra possível razão para a formação dos crioulos. A hipótese de Hugo Cardoso é que este processo de cristianização, como influência direta da presença portuguesa, «criou populações locais de orientação cultural portuguesa» – pessoas que estavam dispostas a aprender a língua portuguesa e a transmiti-la à próxima geração.

Mas é claro que havia uma língua dominante na região – o malaiala –, e, portanto, é surpreendente que o crioulo se tenha tornado primeira língua entre a população.

Rozario, o último falante do crioulo em Cochim, não falava a língua há anos, quando Hugo Cardoso o conheceu: «Ele disse-me que não tinha maneira de falar crioulo há alguns anos, depois de ter falecido um dos seus vizinhos que também o falava. Fui extremamente bem recebido pelo Sr. Rozario e pela sua família, e por isso visitei-o com frequência entre 2007 e 2010, sempre que tinha oportunidade. O Sr. Rozario faleceu em 2010. Nessa altura, foram publicadas na imprensa algumas reportagens que documentavam o nosso encontro e colaboração.»

Como desapareceu o crioulo de Querala

Também a respeito do crioulo e dos seus encontros com Rozario, Hugo Cardoso defende que o uso da língua diminuiu no tempo do colonialismo britânico, quando o inglês se tornou predominante. A partir das suas entrevistas com falantes em Cananor, Cochim e Calecute, Cardoso centrou-se nos períodos difíceis em que o crioulo, outrora língua vital para a família, terá desaparecido. «Esses testemunhos permitem imaginar impressionisticamente em que momento foi interrompida a transmissão do crioulo para a geração mais jovem», escreve este linguista no seu estudo, propondo as seguintes datas:

«O Sr. Rozario em Vaipim e alguns falantes em Cananor (que ainda lá moram) representam a última geração que cresceu com este idioma como parte vital da comunicação familiar. É possível que existam algumas pessoas na região que falem a língua fluentemente ou tenham algum conhecimento parcial dela. As minhas perguntas ao longo dos anos não me levaram a elas, mas não podemos descartar que ainda residam na região. E, de facto, parece haver algum conhecimento da língua no seio da diáspora anglo-indiana em lugares como a Austrália», acrescenta Hugo Cardoso.

Curiosamente, o trabalho de Cardoso inclui também algumas palavras de crioulos fora da costa de Malabar, a que foram atribuídas fonte malaiala. Trata-se de mainato («lavadeiro/lavadeira», do malaiala mannattan), apa («pão achatado», de appam), khadya («tigre», de kaduva) e pata («faixa», de patta).

 

1 N. E.Sempre que disponíveis, adotam-se formas portuguesas, conforme se encontram listadas em Toponímia da Índia – breve análise", a folha, n.º 63, 2020, pp. 4-12. Na indisponibilidade de tais formas, mantiveram-se as formas nativas do estado de Querala, em malaiala.

Fonte

Tradução e adaptação de artigo em inglês publicado no jornal digital indiano News Minute, com a data de 10 de outubro de 2022.