Júlio Francisco Adeodato Barreto (1905-1937) nasceu em Margão e fez estudos secundários em parte no antigo Liceu de Margão, e em parte no Liceu de Nova Goa. Aos 18 anos veio para Coimbra, onde se matriculou na Faculdade de Direito, e decorrido um ano, na de Letras.
A Índia achava-se nesta altura em plena efervescência política. Adeodato Barreto não podia aceitar que a riqueza espiritual da Índia ficasse ignorada. Criou, com o apoio de alguns professores universitários de Coimbra, o Instituto Indiano anexo à Faculdade de Letras e o periódico «Índia Nova», que teve vida fugaz. Propagou a civilização e o humanismo hindu através da revista «Seara Nova» e do periódico «Diabo».
Desta actividade literária saiu uma obra de grande fôlego, intitulada «Civilização Hindu» (Lisboa, ed. Seara Nova, 1935). Mas a província literária em que ele mais avultou é a poesia. «O Livro da Vida», publicação póstuma, contém poemas cuja inspiração e temática foi achar no manancial felicíssimo que é a Índia como ele a visionava na sua mente de oriental cem por cento.
Na sua poesia é indispensável libertar o ritmo da convenção, destruir o preconceito que amarra um certo ritmo a um determinado arranjo métrico.
Quer isto dizer que, dentro da mesma composição, os elementos da expressão — ritmo, metro, rima — devem acompanhar e subordinar-se à ideia, variando com esta. Daí o ritmo desgarrado que seguem os versos do poeta.
O nacionalismo cultural do poeta não lhe permitiu uma vida fácil, e sofreu contínuos dissabores na sua carreira. Morreu com apenas 32 anos de idade. Apresentamos aqui uma amostra poética do autor goês. Pode-se colher mais informação sobre a sua vida e obra consultando: Vimala Devi e Manuel Seabra, «A literatura indo-portuguesa», 2 vols., Lisboa, 1971; Filinto Cristo Dias, «Esboço da história da literatura indo-portuguesa», Bastorá (Goa), 1963.
Fala-se muito hoje em Portugal da lusofonia e da literatura PALOP, mas ignora-se que a língua portuguesa foi cultivada com esmero em Goa, e é um tesouro cultural que merece ser reconhecido, acariciado e reavivado.
Redenção
Goa bela!
Olha os Gates (1) em chama!
Olha a crista revolta
que se inflama!
Andam tigres à solta
nos bosques de Bengala!
É a Índia que te fala!
É a Índia que te chama!
Olha os Gates floridos, Goa bela!
Seus píncaros parecem mil canteiros
de corolas subtis, multicolores;
nos seus desfiladeiros,
a Água se transforma em mar de leite
e o leite em mar de Flores!
Eis a Manhã de Glória, que desponta
num clarão!
Goa! Olha os Gates floridos!
Olha os reflexos da Aurora
da tua redenção!
Vês como, além, o areal palpita
e as arequeiras
suas copas virentes entrelaçam
ao seu calor?
No jangál (1) já vê o wág (1) se não agita,
e, alacres, despertam capoeiras,
e mil casais se enlaçam
com amor...
É o fulgor
da tua manhã de Glória que os excita!
Ó Goa bela, ouve os Gates cantando:
nos seus mihares
de ôllos (1) seculares
— imensas catedrais abobadadas —
acordam as ninhadas!
A brisa do Decão traz-nos, dos ninhos,
suas canções:
parecem luz a entrar aos bocadinhos
nos corações!
Olha os Gates, ó Goa, Goa bela!
Vê como as verdes olas se espanejam
nos seus palmares;
e os bule-bules gárrulos festejam
a hora do resgate!
O coco, escrínio de oiro,
tingiu-se de mais loiro,
e nas searas das morodas (1)
se aloira mais o bate!(1)
Goa bela!
Eis o pólen da Vida
que Súria (1) vem verter nos teus jardins!
Abre à Vida o teu peito:
o seu beijo fecundo redimida,
a Natureza juncará teu leito
de mogarins (1) !...
O Mar, teu bardo antigo,
teu velho amante,
estorce-se em tuas praias suplicante,
esmolando carícias:
(blandícias
de traição...)
Mas não lhe volvas teu olhar amigo,
ó Goa bela!
O mar é um inimigo:
se te traz a monção,
também te traz procela
e já te trouxe a santa
Inquisição...
O Mar, teu velho amante?
Tola a paixão qu´inda por ele nutres!
pelos trilhos
do seu dorso gigante,
pombas de brancas asas,
(por dentro abutres
de goela hiante...)
vieram sobre ti banquetear-se
e te servirem fogo em vez de luz:
e mancharem teus lares
e queimarem teus filhos,
teus livros, teus tesourso, teus altares
frias, pálidas mãos alçando a Cruz!
E com os filhos queimados,
com os livros perecidos,
os altares destruídos
e os templos profanados,
os teus Deuses te deixaram,
os teus sábios morreram
as virtudes debandaram
e... os abolins (1) feneceram...
Hoje na tua vida
tudo é monotonia:
sem ciência nem cultura, sem génios nem poetas
vegetas...
Pobre mina exaurida!
No ritmo da ataxia
a seiva produtiva
estancou em tuas veias...
E crês-te progressiva!
E pensas iludir essa melancolia
caiando de alvaiade as faces bronzeadas,
a fingir de .... europeias!
Mas ficam furta-cores...
Águias ousadas
e inquietas,
condores
ansiosos de vida e de espaços,
teus filhos,
buscando novos trilhos
abandonam-te em triste debandada.
Uns encontram a Glória, outros a Morte:
eles, águias inquietas
na sua sede de vida e de espaços!
Mas tu, indiferente à sua sorte,
comes do ganho dos seus braços
e encostas-te às muletas
como uma velha trôpega e cansada!
Eis a lição,
«a exploração»,
que te legou a Europa, tua senhora:
ela explorou-te outrora,
tu exploras agora
os filhos do teu próprio coração!
Pobre Goa, tão pobre! Em que ignóbil carcaça
pôs a tua alma d´ouro, a hora da desgraça!
Teu cérebro esgotado
dormiu na inconsciência!
E, esquecido o passado,
interrupta a História,
bate em vão a alheias portas em busca da Ciência!
Vai em balde a estranhas terras à procura da Glória!
Ó Goa bela! Acorda!
Esquece-te e recorda!
Esquece os longos anos de desdita,
de miséria infinita,
de revolta, de luto, de opressão!
Esquece a Inquisição,
e o Jesuíta
que te torceu a alma,
que te deixou por arma
a hipocrisia,
e cavou mil abismos penetrantes
(fé, costumes, língua, tradição...)
entre
os filhos do teu ventre.
Esquece-te das noites horrorosas
e trágicas, de incêndios crepitantes
em que, templo após templo,
campo após campo,
se consumia
o melhor das riquezas portentosas
que no teu seio havia.
Ó Goa bela, acorda!
Esquece-te e recorda!
Recorda a tua História!
Folheia o Livro de Ouro do Passado!
Volve às eras de glória
em que eras grande, em que eras moça e sábia,
em que os homens do Pérsico e do Tigre
te vinham ofertar corcéis da Arábia
e tu lhes davas sândalo e gengibre;
em que os teus cinco rios,
cantados
pelas puranas santas
lavavam os pecados
e eram visitados:
rios cuja água, bebida,
era uma fonte de amor, doçura e vida!
Esses tempos passaram,
estas glórias morreram,
essas árvores d´ouro feneceram,
e as águas sagradas,
abandonadas,
se profanaram...
Jamais um batelão
de quilha donairosa
flutuou triufante à tona do Zuari (1);
e a flor da tradição
tremeu e, pressurosa
fugiu de ao pé de ti...
Outros povos, porém, outros ares mais puros
e reinos mais seguros
guardaram com unção
o seu botão.
Hoje, desabrochada, as pétulas estrela
e estende para ti:
E sobre o gineceu — exulta ó Goa bela! —
surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi (1)!
E agora
olha a manhã de glória que desponta
num clarão:
É ela
— Ó Goa bela!
São os Gates floridos!
São os reflexos da Aurora
da tua redenção!
(1) Glossário de termos de origem indiana:
Gates= do Konkani «Ghant» ou cordilheira que separa a zona litoral de Goa do planalto de Decão.
Jangál = floresta
wág = tigre
ôllos = vôvio (?) ou rimas populares
morodos = murddi, ou terrenos cultivados nas encostas das colinas (A.B. parece ter errado. Estes terrenos utilizavam-se quase exclusivamente para o cultivo de legumes e cereais).
bate = arroz antes de ser descascado.
Súria = Sol
mogarins = flores brancas e cheirosas, muito procuradas pelas senhoras indianas para adorno da cabeça e para grinaldas.
abolins = flores encarnadas, sem notável cheiro, e muito utilizadas em Goa nos serviços religiosos, e para fabricar grinaldas.
Zuari = o maior rio ao sul de Goa.
Lakximi = deusa consorte de Vishnu, e fonte de beleza e de fortuna.
Júlio Francisco Adeodato Barreto escreveu este poema em Coimbra, a 25 de Janeiro de 1931. In "O Livro da Vida", Nova Goa, 1940.