«(...) Desde a chegada ao poder de Narendra Modi, a Índia tem assistido a uma "limpeza toponímica" – que alguns alegam ser também étnica e cultural -, sobejamente tratada na imprensa internacional: nomes hindus ou de heróis dessa etnia têm substituído os ligados ao colonialismo e outras culturas que integram a multiculturalidade indiana. (...)»
Ultimamente, a Índia tem feito parte da discussão pública por várias razões (e.g., a Cimeira dos BRICS e a chegada à Lua); há pouco, nova polémica atingiu as redações internacionais e até as portuguesas: Droupadi Murmu, presidente da Índia, enviou aos participantes da Reunião do G20, a 29 de agosto, um convite para jantar, que subscreve como "Presidente de Bharat". O facto tem sido muito discutido, sobretudo nos media indianos, britânicos e paquistaneses. Para quem acompanha a política indiana, a questão do nome do país não será surpreendente, mas, para um europeu ocidental comum, é-o com certeza.
À época da independência da Índia, quatro nomes coexistiam para denominar o subcontinente indiano: Hindustão, Índia, Al-Hindi e Bharat. Nehru usava todos, distinguindo, porém, as suas diferentes referências e valores semânticos.
Hindustão tem origem persa, toma por base hindu, a que soma o típico sufixo que encontramos, e.g., em Paquistão ou Afeganistão; está atestado desde o séc. III a.C. para referir o território abaixo do rio Indo. A referência e a semântica do nome foram variando: de nome geográfico, étnico e religioso, no final do século XIX, ele permitiu ligar a identidade nacional a um território, uma língua e uma religião. Índia vem do latim India, que, por sua vez, provém do grego Indikê; Al-Hindi é a variante árabe do nome. Apesar das diferentes formas, todos têm por base o mesmo étimo, hindu, forma do antigo persa para Sindhu, nome do rio Indo na antiga literatura sânscrita. O nome Hindustão é associado ao Império Mogol (também designado Mugal ou Mogul, que dominou parte do subcontinente entre 1526 e 1857); Índia é associado ao Império Britânico.
Bharata ou Bharat ocorre nas Puranas (textos hindus, sagrados para o hinduísmo) e outros textos da mesma época, sendo, portanto, de base religiosa. Refere-se ao território suprarregional e subcontinental onde se desenvolveu o bramanismo, em cuja literatura Bharata é associado a um princípio interno de unidade, parte de um discurso cosmológico que situa a atividade humana numa moldura espácio-temporal.
Em 1950, a Constituição da Índia determina os nomes oficiais do país, Índia e Bharat – a versão inglesa do artigo 1.º, «India, that is Bharat, shall be a Union of States», cuja formulação tem suscitado muita discussão, constitui o único excerto do texto onde Bharat ocorre. India, that is Bharat – Coloniality, Civilisation, Constitution é o título de recente livro de J. Sai Deepak (2021); "India, that is Bharat...": One Country, Two Names é o título de um artigo de 2014, que aborda o tema dos nomes da Índia, sobretudo da perspetiva histórica e cultural, do qual bebi muita informação.
Bharat é nome autóctone, de origem hindu, associado à religião e a sua semântica tem vindo a incorporar também a vertente política. Não é, portanto, de estranhar que ele constitua a denominação que melhor satisfaz os setores mais nacionalistas do país, nomeadamente o Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano), no poder desde 2014.
Desde a chegada ao poder de Narendra Modi, a Índia tem assistido a uma «limpeza toponímica» – que alguns alegam ser também étnica e cultural -, sobejamente tratada na imprensa internacional: nomes hindus ou de heróis dessa etnia têm substituído os ligados ao colonialismo e outras culturas que integram a multiculturalidade indiana. Modi, como outros líderes autoritários, conhece bem o poder da língua, neste caso, expresso na toponímia.
Crónica da professora universitária e linguista portuguesa Margarita Correia, transcrita, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 11 de setembro de 2023.