« (...) Goa tem tudo para fazer a ponte entre Portugal e a Índia. (...)»
A língua portuguesa ressuscitou este domingo no mais antigo jornal de Goa e isso é uma boa notícia. Será só uma vez por semana, e apenas alguns artigos, mas é significativo que O Heraldo, que está a celebrar 120 anos, diga que o faz a pedido de leitores seus. Não é nostalgia, é sinal de uma redescoberta pelos goeses de uma língua que chegou a ser a de muitas famílias em casa – para algumas continua a ser e há quem cante fado – e que influenciou muito o concanim, a língua local. António Lobo, num artigo publicado já este domingo em português, dá os exemplos de doens para doença, também cazar, sushegad ou xarop.
Agradeço a Eugénio Viassa Monteiro, professor universitário que vive entre Portugal e a Índia, o alerta sobre esta novidade n"O Heraldo. Desde 1983, ou seja 22 anos depois da anexação do território pela União Indiana, que o jornal usa o inglês. Mas nunca esqueceu a sua origem, pois no título manteve o português, destacando porém a cor dos dois ós, no início e no fim, para ficar Herald em inglês.
Viassa Monteiro faz parte de um grupo de amigos meus da diáspora goesa (juntamente com Valentino Viegas e Edgar Valles) que me ajudam a perceber o que se vai passando nesse pequeno estado da Índia que Afonso de Albuquerque conquistou em 1510 e foi o centro do império português na Ásia. Hoje, como vi numa visita que fiz em 2007, são sobretudo as muitas igrejas católicas e os apelidos portugueses como Fernandes, Noronha ou Mascarenhas que recordam essa estreita ligação entre Goa e Portugal.
Fundado por Aleixo Clemente Messias Gomes, O Heraldo reconhece com esta reintrodução do português nas suas páginas o interesse da juventude pela língua de Luís Vaz de Camões (que viveu em Goa), até por questões de oportunidade profissional no mundo lusófono com os seus 270 milhões de falantes. Mas com grande mérito do Instituto Camões é sobretudo a cultura portuguesa em geral que ganha novos interessados, mesmo em zonas da Índia que não sofreram a colonização portuguesa.
O próprio jornal segue com atenção o que se passa em Portugal. Foi n'O Heraldo que li há uns meses que João Leão, novo ministro das Finanças, tinha raízes goesas. O terceiro goês no governo português, contando com o primeiro-ministro António Costa e com Nelson de Souza, ministro do Planeamento.
Pequena mas próspera (tem o maior rendimento per capita de todos os estados da Índia), Goa atrai turistas estrangeiros mas também indianos e não só pelas praias. Tem uma cultura de tolerância que é notável e mantém um código civil que não faz distinção entre comunidades religiosas, um legado português que foi respeitado por Jawaharlal Nehru, o homem que foi o primeiro primeiro-ministro da Índia independente em 1947 e que não desistiu enquanto não incluiu as possessões portuguesas no novo país. Tinha vergado antes os britânicos, grandes colonizadores da Índia, que chegaram ao subcontinente em força depois de receberem Bombaim como dote de Catarina de Bragança, a filha de D. João IV que casou com o rei de Inglaterra.
Goa tem tudo para fazer a ponte entre Portugal e a Índia. As relações são excelentes depois da chegada da democracia a Portugal e pouco a pouco os complexos históricos, de um lado e do outro, vão desaparecendo. Constantino Xavier, académico português de origem goesa, usou há dois anos, além do inglês, do hindi e do concanim, o português no agradecimento em Nova Deli a um prémio oferecido pelo ministério dos Negócios Estrangeiros. Disse que era «uma das línguas da Índia», e um país democrático com 1300 milhões de habitantes, falantes de hindi, bengali, tâmil, [penjabês][*] e tantos outros idiomas, só se pode sentir confortável com a ideia.
«Esperemos que este empreendimento em português não gere polémicas, mas sirva de ponte para unir todos aqueles que acreditam que a língua não deve dividir, mas unir», escreve o editor d'O Heraldo. Polémicas porquê? Também é muito bom para Portugal e a Índia que o curso de hindi coordenado pelo professor Shiv Singh na Universidade de Lisboa atraia cada vez mais alunos. As línguas acrescentam sempre e poucos povos sabem isso tão bem como o indiano.
[* N.E. – No original "penjabi". A língua em questão e o estado correspondente têm nomes que ainda não se fixaram totalmente. Nesta transcrição, substitui-se "penjabi" por penjabês, forma consignada no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves. Contudo, os dicionários registam outras formas: panjábi (Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa) panjabi (Dicionário Houaiss), punjabi (idem). Ver também discussão em 26/05/2012 em O Linguagista, de Helder Guégués.]
Artigo do autor publicado em 6 de setembro de 2020 no Diário de Notícias