Em primeiro lugar, não podemos deixar de assinalar a nossa estranheza pela afirmação de que «os grandes linguistas aconselham que não se deve dizer o seguinte: "O peixe é para o almoço" (diferente de: "O peixe é para almoço"). Naquela, está contida a ideia de «o peixe» ser dado para o «almoço», como se este fosse um (ou uma) personagem, o que não corresponde à verdade, ao passo que, nesta, há a ideia de finalidade para a qual se destina o peixe». Talvez a estrutura «é para almoço» (sem o artigo definido) na frase apresentada seja uma particularidade do português de Angola, mas em Portugal prefere-se «é para o almoço», com artigo definido.
Por outro lado, o artigo definido não é marca de concretude, mas, sim, de identificação de um referente, muitas vezes em consequência de determinada entidade já ter sido apresentada em discurso. Quando se diz «Era uma vez um peixe que vivia entre as algas. Um dia, o peixe...», o artigo definido marca, na segunda frase, um tópico que foi apresentado anteriormente em discurso, na primeira frase.
Tal como o consulente referiu, os casos apresentados são ocorrências de palavras substantivadas. Trata-se, portanto, de situações especiais, em que, no contexto em que se inserem, os advérbios sim (de afirmação) e não (de negação), assim como os infinitivos dos verbos comer e cantar, são usados como se fossem substantivos1. Portanto, nessas situações, o valor de sim é o da circunstância ou da ideia acessória a afirmação («o sim» = «o consentimento, a aprovação, a afirmação, a concordância»), assim como o de não equivale a negação, a recusa («o não» = «a negação, a recusa»).
São casos de conversão dos advérbios em substantivos.
O mesmo se passa com «o correr» e «o cantar», que, por sua vez, não se referem às atividades referidas por «comer» e de «cantar» numa dada situação, mas são a designação dos próprios atos em geral ou das entidades nele envolvidas ou deles resultantes, tal como comida («o comer» = «a comida») e canto, canção, cântico, cantiga («o cantar» = «o canto», «a canção», «o cântico», «a cantiga»).
Ora, ao significarem atos, tanto os advérbios sim e não como os infinitivos destes verbos se comportam como substantivos.
No entanto, não podemos esquecer-nos de que não se trata especificamente de palavras que habitualmente se incluem na classe dos substantivos/nomes, razão pela qual não nos parece ser muito lógico classificá-las nos tipos de substantivos (concretos, abstratos, comuns e próprios).
De qualquer modo, se tivermos como referência o seu valor/significado nestes casos (afirmação, consentimento, aceitação, negação, recusa, comida, canto, cantiga, canção, cântico), poderemos considerá-los a todos como substantivos comuns2. Por outro lado, a maioria tem caraterísticas abstratas3 (afirmação, consentimento, aceitação, negação, recusa, canto, canção, cantiga, cântico), distinguindo-se do concreto comida.
1 Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 177), definem como substantivo «a palavra com que designamos ou nomeamos […]:
«a) os nomes de pessoas, de lugares, de instituições, de um género, de uma espécie ou de um dos seus representantes: Maria, Lisboa, Senado, árvore, cedro.
«b) os nomes de noções, ações, estados e qualidades, tomados como seres: justiça, colheita, velhice, largura, bondade.»
Alertam-nos, também para o facto de que «toda a palavra de outra classe que desempenhe uma das funções do substantivo [como a palavra que serve, privativamente, de núcleo do sujeito, do objeto/complemento direto, do objeto/complemento indireto e do agente da passiva] equivalerá forçosamente a um substantivo (palavra substantivada).
Segundo a Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 2003, p. 210), os nomes (ou substantivos, na tradição gramatical) são categorias linguísticas caracterizáveis por terem um potencial de referência, isto é, por serem, em geral, utilizados numa situação concreta de comunicação, com uma função designatória ou de nomeação».
2 Os substantivos/nomes comuns distinguem-se dos substantivos/nomes próprios (que nomeiam/designam exclusivamente uma pessoa, um país, uma localidade, uma instituição, razão pela qual se escrevem com maiúscula inicial: João, Lisboa, África, Ministério da Educação), pois não são designadores de um referente fixo. Por sua vez, «os nomes comuns ocorrem, geralmente, precedidos de especificador [artigos: o, a, os, as, um, uma, uns, umas; determinantes: este(s), esse(s), aquele(s), esta(s), essa(s), aquela(s)…], admitindo variação de número. […] Quando ocorrem sem especificador, ou seja, na sua forma não marcada, exprimem uma intensão» (Mira Mateus et alii, Gramática da Língua Portuguesa, ob. cit., p. 215).
3 Os substantivos abstratos designam noções, ações, qualidades e estados: justiça, verdade, opinião, velhice, doença, limpeza, otimismo, ira, largura…). Por sua vez, os substantivos concretos designam os seres propriamente ditos: homem, cidade, casa, peixe, cão, cedro, pasta.