Do ponto de vista estritamente normativo, a resposta mais previsível é considerar a forma "hacktivismo" um neologismo inaceitável. Acontece, porém, que o vocábulo em causa denomina uma nova realidade, a da pirataria informática posta ao serviço de certas causas políticas, o que pode constituir razão suficiente para uma avaliação mais demorada.
Trata-se do aportuguesamento de um empréstimo proveniente do inglês, a amálgama hacktivism1, também escrita hactivism, resultado da junção de hack, «acutilar; aceder ilegalmente» (ou da truncação de hacker, «pirata informático; ciberpirata; pirata eletrónico»)2, e activism, o mesmo que «ativismo, militância». É, portanto, um item lexical que ocorre em português muito provavelmente devido ao facto de este novo tipo de intervenção política, de protesto, ter sido identificado num universo de utilização da língua inglesa como idioma franco da informática, levando assim a cunhar e a projetar a denominação. Como é de calcular, no contexto das línguas românicas, o português não está isolado na adoção do termo: para o espanhol, a Fundéu BBVA menciona hacktivismo no artigo que dedicou em 2017 a hacker; e o dicionário de italiano Treccani atesta desde 2012 o termo hacktivista, que legitima nessa língua a forma hacktivismo.
Quanto à introdução deste vocábulo no léxico do português, não foi aqui possível datar com precisão a ocorrência mais assídua da palavra, mas ela aparece, por exemplo, em Portugal, numa peça do Jornal de Notícias de 26/02/2015:
«Hacktivismo – É uma forma de ativismo realizada, como o próprio nome indica, por hackers, ou piratas informáticos com objetivos ideológicos (e sem fins lucrativos próprios). É considerada uma atividade ilícita por parte das autoridades, pois pressupõe um ataque a um sistema informático, com um objetivo social ou político relevante para quem executa o ataque. As pessoas que decidem fazer este tipo de ataques são denominadas de hacktivistas. O mais conhecido grupo hacktivista do planeta chama-se Anonymous e nasceu em 2003.»
Sobre as formas "hacktivismo" e "hacktivista", diga-se que, embora o elemento hack resista a um pronto aportuguesamento – foneticamente tem aspiração inicial, que não existe em português, e apresenta um k, letra que, geralmente não deve escrever-se em nomes comuns –, o mesmo não acontece com o segundo elemento, transposto sem grande alteração como ativismo. A verdade, porém, é que não só o elemento hack já é hoje conhecido em português pela introdução, difusão e frequência significativa de hacker, mas também a possibilidade de o substituir por um termo português parece redundar numa perífrase pouco ágil – «ativismo com recurso à pirataria informática» –, que pode perder em economia e expressividade3.
De qualquer modo, os mais críticos da interferência dos estrangeirismos nos padrões morfológicos e no uso ortográfico da língua nacional poderão objetar, por exemplo, que a palavra inclui um anglicismo inaceitável (pelas razões já enunciadas ou apesar delas), tornando-se, portanto, necessária uma solução vernácula. Para quem acha que o uso deste tipo de empréstimos é intolerável, deixam-se sugestões em alternativa ao aportuguesamento em causa: «ativismo por pirataria informática», «pirataria informática ativista» e, adaptando um exemplo catalão, «utilização não violenta de ferramentas digitais ilegais ou legalmente ambíguas com finalidades sociais ou políticas»4. São soluções perifrásticas, isto é, palavrosas, sem dúvida abertas a correções e futura obliteração, logo que surja o apego a uma expressão, vernácula (ou não).
Enfim, talvez uma resposta mais conclusiva requeira tempo, para acompanhar a evolução do aportuguesamento "hacktivismo" e a eventual criação de termos alternativos, de forma espontânea ou por decisão de corpos editoriais e entidades (eventualmente) com poder de intervenção normativa.
1 Poderia falar-se em composto, mas a classificação de amálgama é mais adequada, porque a palavra inclui o segmento -tivism, que é apenas parte da palavra activism, e não uma unidade constituinte. As páginas de tradução Linguee (consultadas em 32/05/2020) registam hacktivist, que se mantém nas traduções em português.
2 Ciberpirata tem entrada em dois dicionários elaborados e publicados no Brasil, o Dicionário Houaiss e o Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. A expressão «pirata eletrónico» consta da definição que o dicionário Michaelis apresenta para ciberpirata.
3 A variante inglesa não dicionarizada hactivism motivará o aportuguesamento "hactivismo", muito mais aceitável dos pontos de vista fono-ortográfico e morfológico. Todavia, não é de excluir que a perda do k acarrete o obscurecimento da alusão à mais conhecida forma hacker, tornando menos óbvia a descodificação de uma forma como "hactivismo". Acrescente-se que ainda não existe um aportuguesamento fono-ortográfico estável de hacker: se se pode adaptar como "háquer", atesta-se no Brasil a forma "ráquer" (cf. artigo da Wikipédia), com o r a sugerir a aspiração do h inglês, conforme se explica na nota 2 da resposta intitulada "A tradução das palavras inglesas hacker e cracker".
4 Com base em ciberpirata, há mais soluções possíveis: «ciberpirataria ativista», ou «ativismo ciberpirata».
Cf. Sobre o uso do termo "hacker" + O que é um "hacker"? + Entenda o que é hackerativismo + Conheça 7 casos recentes de ativismo hacker