As línguas e as famílias de línguas têm padrões categoriais próprios e, portanto, cada qual pode revelar a sua lógica interna. Quer isto dizer que, no português, como noutras línguas românicas, sentir-se tem um se que não tem função reflexiva, tal como acontece em enervar-se, irritar-se ou lembrar-se. Nestes casos, os gramáticos e linguistas consideram que o se é antes a marca de um estado emocional ou de uma atividade mental se limitarem ao sujeito que os experimenta, fazendo os verbos perderem a sua transitividade.
Esta perda de transitividade fica patente, quando se observa que este se – que se pode chamar pseudorreflexo – não é totalmente compatível com o seu reforço por expressões como «a si próprio/mesmo», ao contrário do que acontece com os verbos verdadeiramente reflexos:
1. ? sinto-me bem a mim próprio
2. OK, lavo-me bem a mim próprio
Em 1, o ponto de interrogação indica que a conjugação pronominal de sentir-se mostra dificuldade em combinar-se com «a mim próprio», enquanto em 2 a mesma associação é totalmente aceitável, apontando para que apenas lavar tem um uso verdadeiramente reflexivo, isto é, um uso em que o agente da frase é também paciente da ação expressa pelo verbo. Além disso, note-se que 2 se presta a traduzir-se em inglês como «I wash myself» (pelo menos, em certos contextos1, se não se preferir «I shower/bathe», que parecem mais frequentes), enquanto «eu sinto-me» não encontra construção reflexa correspondente em inglês e transpõe-se nesta língua intransitivamente («I feel well/good»).
1 N. E. (3/07/2017) – Agradeço ao consultor Luciano Eduardo de Oliveira a seguinte observação: «Um exemplo menos inequívoco em inglês seria I cut myself. Diz-se comummente I wash, sem myself, apesar de a versão com myself ser tecnicamente possível. É o inglês que é a exceção com o verbo sentir-se. Em todas as outras línguas que conheço, inclusive germânicas, aparece o pronome reflexivo: ik voel me, ich fühle mich, jag känner mig, etc.»