Antes de mais, importa clarificar que falar de aspetualidade implica convocar uma noção temporal que indica a duração de uma situação ou as suas fases. Por outro lado, é importante também reiterar que a identificação do valor aspetual de uma situação é uma tarefa complexa por envolver muitas variáveis. Como recorda Campos, «o valor aspectual de uma situação só pode ser estabelecido pela integração progressiva de todos os constituintes que participam na sua definição, a saber, verbo lexical, predicado (SV), sujeito, tempo verbal, adverbial temporal-aspectual, contexto discursivo.»1 A falta de algum destes elementos pode comprometer ou dificultar a interpretação do valor aspetual veiculado.
A questão da diferença entre o valor habitual e o iterativo está relacionada com a noção semântica de duração. A duração opõe-se à pontualidade e está relacionada com a expressão do tempo de desenvolvimento de uma situação. A pontualidade, por seu turno, descreve situações que não têm duração interna, ou seja, que entre o início e o términus têm apenas um lapso temporal.
A duração pode ser descrita como contínua (sem interrupção no seu tempo de desenvolvimento) ou descontínua (com interrupção no seu tempo de desenvolvimento). Esta última perspetiva contribui para a criação da ideia de repetição (a descrição é de um conjunto de situações). É no âmbito do padrão de repetição de uma situação que se enquadram os valores aspetuais habitual e iterativo. Assim,
(i) habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»2; trata-se de uma repetição descrita como ilimitada:
(1) «O João escreve.» (= O João é escritor.)
(ii) o iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»3 ; trata-se de uma repetição apresentada como limitada:
(2) «O João pulou durante meia hora.»
A habitualidade é frequentemente marcada por um constituinte adverbial ou uma oração. O advérbio habitualmente costuma ser usado como teste para identificar a presença de uma situação descrita como habitual. Também o presente e o imperfeito podem expressar a habitualidade. Já o pretérito perfeito, por marcar um limite final no passado, é compatível com a expressão da iteração.
Assim, na frase (3) descreve-se a situação como iterativa porque esta é vista como um evento único, cujo fim se delimita temporalmente.
(3) ««O João correu durante uma semana.»
O valor iterativo está combinado com o perfetivo na medida em que ao valor de repetição este acrescenta a perspetivação da situação como um todo, que permite introduzir a delimitação temporal que é característica do valor iterativo. Todavia, e na falta de um contexto alargado, o valor perfetivo não parece ser o dominante.
A frase (4)
(4) «É costume visitar o meu primo duas vezes por semana.»
Apresenta, de facto, um valor habitual. A locução «duas vezes por semana» não introduz um limite temporal, antes marca a repetição da situação (uma das características do valor habitual). É a construção «é costume» que marca a repetição como ilimitada (veja-se como «é costume» poderia ser substituído por habitualmente).
Por fim, o constituinte «todos os dias» pode, de facto estar associado aos dois valores em análise:
(5) «O João escreve todos os dias.» (valor habitual)
(6) «Enquanto pertenceu ao clube desportivo, o João treinou todos os dias.» (valor iterativo)
Esta possibilidade alerta para o facto de este constituinte não poder ser usado como elemento de teste para verificar o valor aspetual.
Disponha sempre!
1. Maria Henriqueta Costa Campos, “Para uma reinterpretação de alguns fenómenos aspectuais“, Actas do Congresso Internacional sobre o Português, vol. II., Lisboa, 1994.
2. Cunha in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 586.
3. Idem, ibidem.