Quando se fala em pronúncia-padrão, não significa que, com esse termo, se refira uma pronúncia vista como a única correta. Nem se julgue que a grafia é espelho da pronúncia (julgar isso é que poderá ser ser, paradoxalmente, a verdadeira mentira de 1 abril). Vou procurar, portanto, esclarecer um pouco melhor a afirmação feita na Abertura em causa.
Em Portugal e noutros países de língua portuguesa, as palavras escritas que exibem ou são geralmente pronunciadas não com o ditongo [ow], mas, sim, com a vogal [ô] (o chamado o fechado). Numa perspetiva puramente descritiva (não normativa), é isto que se observa junto de muitos falantes, se não mesmo entre a maioria dos falantes do português do Centro e do Sul de Portugal.
Nada do que se acaba de referir entra em choque com conservação do ditongo pelos falantes do terço norte de Portugal; mas a verdade é que a pronunciação representada nas transcrições fonéticas disponíveis nos dicionários – dê-se o caso do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – indica uma vogal simples, e não um ditongo. Pode argumentar-se que nos dicionários produzidos no Porto se transcreve <ou> como ditongo – [ow] (ver transcrição fonética de ouro no dicionário da Porto Editora, disponível na Infopédia). É isto verdade, mas o símbolo da semivogal [w] figura entre parênteses, indicando-se que esta semivogal é possível e aceitável na articulação, mas não é obrigatória: «ouro [...] [ˈo(w)ru]».
Parece, portanto, que a pronúncia mais comum que corresponde à grafia <ou> é com uma vogal simples – "ô". E, além de ser mais comum, a redução do ditongo a vogal simples é também um traço da pronúncia-padrão correspondente à grafia <ou>. Não se pense que esta situação é de agora. Na realidade, é já antiga a consciência, mesmo entre os gramáticos normativos, de que ou = "ô", embora fosse inovação no contexto da história da língua, fazia parte da pronúncia culta e modelar. Cite-se o lisboeta Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades de Subtilezas do Idioma Português, 1958):
«Pronúncia do ditongo ou. O Norte profere como verdadeiro ditongo o ou, isto é, o o do grupo ou é a vogal mais intensa ou tónica, e ouve-se como base ditongal, mas o u, que vem depois desse o, também se ouve, embora como átona subjuntiva. É, aliás, a manutenção do ditongo latino. [...] Em contraste, as pessoas do Sul reduzem o ditongo ou à vogal ô: Côto, pôco, Sôto, ôro, etc. Quem profere melhor: o Norte, ou o Sul? No ponto de vista da fonética científica, proferem ambos bem, porque os factos registam-se ou, como diria Shakespeare, "facts are facts". Se passarmos, todavia, ao campo das preferências, das escolhas, direi que a pronúncia ô, com a redução ditongal de ou, acusa em Lisboa e no Sul de Portugal um estágio mais adiantado de evolução. Por outras palavras: ou, lido ô-u, é arcaico e etimológico, mas vivedoiro no Norte; ou, lido ô, é uma redução mais adiantada. Dou o meu voto ao ô, na pronúncia paradigmática.»
O que acaba de ser citado configura, portanto, um juízo normativo, que, sem condenar a conservação do ditongo [ow], considera que a sua redução faz parte da pronúncia-modelo do português («pronúncia paradigmática»). Acrescente-se que a descrição linguística mais recente dá conta da redução de ou como característica não só dos falares do Sul de Portugal, mas também da norma culta, o que, historicamente, é interpretável como reflexo de os centros de decisão política (para o bem e para o mal) se situarem na metade meridional do país, e não na parte setentrional.
Cabe ainda assinalar que António Emiliano, em Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição (Guimarães, 2009), define o português "standardizado" de Lisboa como «norma-padrão europeia de facto» (p. 4); e menciona o ditongo em discussão no seguinte comentário:
«[O] padrão combinatório [dos ditongos] ficou completamente estabilizado com a alteração dos ditongos [ei̯] e [ɛi̯] para [ɐi̯] e a monotongação do ditongo [ou̯] para [o], processos que eliminaram na língua padrão os ditongos isocromáticos [ou seja, [ei̯] e [ɛi̯], que associam vogais palatais a uma vogal subjuntiva palatal, e [ou̯], que junta uma vogal velar a um vogal subjuntiva também velar]» (p. 36).
De acordo com esta descrição, o mesmo autor associa sempre à grafia <ou> o símbolo fonético [o] (vogal oral velar média alta arredondada); exemplos (pp. 166 e 189/190): besouro [bɨ.zˈo.ɾu], frouxidão [fɾo.ʃi.dˈɐ̃w].
Repito: nada disto contraria o facto de o ditongo [ow] se conservar e transmitir entre a população do Norte português. Ainda bem que assim é, porque a manutenção deste ditongo é, sem dúvida, um traço importante da identidade e da riqueza do nosso idioma.