Existe alguma divergência na forma como os dicionaristas tratam o mitónimo latino Cœus ou Coeus (correspondente ao grego Κοῖος), que designa um dos titãs referidos por Virgílio no Livro I (v. 279) das Geórgicas. Numa pesquisa não exaustiva, depararam-se-me duas formas:
(1) Ceu nos seguintes dicionários:
Francisco Torrinha: Dicionário Latino-Português. Porto: Porto Editora. 2.ª edição. 1942. 947 p. [p. 159]
José Pedro Machado: Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Primeiro Volume A–D. Lisboa: Confluência 1984. 525 p. [p. 396]
Dicionário Latim-Português, 2.ª edição. Porto: Porto Editora 2001. 717 p. [p. 149]
(2) Céu nos seguintes dicionários:
Nicolau Firmino: Dicionário Latino-Português. Lisboa: Livraria Académica de D. Felipa. 1945. 630 p. [p. 105]
Francisco António de Sousa: Novo Dicionário Latino-Português. Edição actualizada e aumentada por José Lello e Edgar Lello. Porto: Lello & Irmão 1984. 1114 p. [p. 177]
Encontrei igualmente a grafia Ceu no Novissimo Diccionario Latino-Portuguez, de F. R. dos Santos Saraiva (9.ª edição. Paris, Rio de Janeiro: Livraria Garnier 1927. xx, 1297 p. [p. 241]), mas não é claro a qual das duas formas corresponderá, dado que a ortografia utilizada nesta obra, mesmo na edição (ou melhor, reimpressão) de 1927 (1.ª edição: 1889), é a anterior à reforma ortográfica de 1911.
Ou seja, os dicionaristas referidos divergem apenas no que toca ao timbre da primeira vogal do ditongo: Ceu (com e fechado, como em leu e meu) ou Céu (com é aberto, como em véu e... céu).
Trata-se de um vocábulo que nos chegou por via erudita. Se proviesse do latim popular, o ditongo pronunciar-se-ia muito provavelmente com e fechado, como explica Francisco Torrinha na sua Gramática Portuguesa (Porto, Edições Maranus, 1934, p. 29):
«O ditongo oe do latim clássico, que primitivamente se escrevia oi, corresponde no latim popular e no português a um simples ê. Ex.: poena(m) > pena, amoenu(m) > ameno.»
Consequentemente, e por uma questão de coerência, creio ser preferível a forma Ceu1, com e fechado, em homofonia com o pronome seu.
É esta, aliás, a forma empregada por Arthur Rodrigues Pereira Santos na sua tradução do referido trecho virgiliano, incluída na sua dissertação de mestrado A tradução identificadora aplicada ao Livro I das Geórgicas de Virgílio, apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2014 e disponível aqui:
«a Terra, num horrendo parto, gera
Ceu, Jápeto, Tifeu sevo e os irmãos
pola celeste queda conjurados:» (p. 105)
No original lê-se:
partu Terra nefando
Coeumque Iapetumque creat saeuomque Typhoea
et coniuratos caelum rescindere fratres.
Note-se que, nestes versos latinos, aparecem os vocábulos Coeum (acusativo de Coeus) e caelum, os quais, porém, se distinguem claramente, não só pela diferença dos ditongos, como pelo l do segundo termo, o que não sucede com Ceu e céu, que se pronunciam de forma semelhante. O tradutor, no entanto, contornou habilmente este obstáculo, vertendo caelum rescindere por «celeste queda».
Em 1875, numa tradução integral das Geórgicas «em verso endecasyllabo» publicada em Lisboa e disponível aqui, João Félix Pereira, «Agronomo. medico, engenheiro civil [!!] e professor jubilado do Lyceo Nacional de Lisboa», também se saiu a contento, recorrendo a um sinónimo de céu:
«[..] e a Terra
D’um parto monstruoso deu ao mundo
Japeto, Ceo, Typheo e os deshumanos
Ermãos, que a destruir se resolvérão
O firmamento.» (p. 16)
Já António José Osório Pina Leitão, na sua Traducção livre ou imitação das Georgicas de Virgilio em verso solto, publicada em Lisboa em 1794 e disponível aqui, não conseguiu melhor do que isto:
«[...] a terra pario de hum parto horrendo
Tyfêo, Japeto, e Ceo, impios gigantes,
Que crueis escalar os Ceos tentarão;» (p. 28)
Atente-se que, nestas duas últimas citações, Ceo e ceo refletem obviamente a ortografia da época. No entanto, Ruy Mayer, em As Geórgicas de Vergílio. Versão em prosa dos três primeiros livros e comentário de um agrónomo (Livraria Sá da Costa, 1948, 407 p.), serviu-se estranhamento dessa grafia, quiçá numa tentativa de destrinçar o mitónimo do substantivo comum:
«[...] a Terra, num parto nefando, deu à luz Ceo, Jápeto, o cruel Tifeu e os irmãos que se conjuraram para derrubar o céu.» (p. 43)
Por último, atente-se a forma Coios, transliterada diretamente do grego Κοῖος, sem passar pelo crivo latino, a qual aparece no verbete “Titãs” (p. 494) do Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina de Paul Harvey (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987, 552 p.), traduzida do original inglês por Mário da Gama Kury. O tradutor, aliás, explica, nas suas “Notas preliminares” (p. 11), ter optado por uma translineação exata dos nomes próprios gregos, «à exceção de uns poucos mais tradicionais (p. ex.: Homero, Platão)».
A questão dos nomes próprios gregos é complicada e tem feito correr muita tinta, em português e não só. A resposta "Acentuação de nomes de origem grega" é um bom ponto de partida e creio que é suficiente para a maior parte das situações. Existe uma obra de António Freire exclusivamente dedicada a este assunto:
Helenismos portugueses. 2.ª edição. Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga 1996. 295 p.
Tem uma secção dedicada a nomes comuns (p. 1-69), outra a nomes próprios (p. 71-126), outra a afixos (p. 127-128), mais índices. Contudo, não refere o nome Ceu.
Seja como for, por vezes há divergências a este respeito entre os eruditos, como se pode constatar pela crítica de José Lazzarini Junior ao Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes, o qual exerceu o seu direito de resposta aqui. Sendo assim, talvez se possa perdoar a José Saramago os erros que lhe imputa António Rego Chaves na sua recensão a uma obra de vulto que aquele verteu do francês. Já em 1875 se queixava João Penha, no periódico A Republica das Letras que «Em quanto aos nomes proprios gregos, a hecatombe é geral»...
1 Ceu é a grafia fixada por Rebelo Gonçalves no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), que serve de única fonte para o registo da mesma forma no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado.