DÚVIDAS

Negação expletiva (II)

Há dias, num artigo de jornal, tropecei na seguinte frase:

«Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos. Nuns dias agarramo-nos ao mais ligeiro sinal positivo, noutros somos realistas: a economia deve garantir a Trump o seu segundo mandato.»

A minha dúvida: «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos», ou, antes, «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos NÃO nos ponha o coração aos pulos» ?

Os meu agradecimentos.

Resposta

A frase em causa está correta, porque se pretende dizer, afinal, que «a corrida presidencial nos põe o coração aos pulos em todos os dias que se passam». Mas igualmente correta e semanticamente equivalente se revela a sequência «não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos (EU) não nos ponha o coração aos pulos», 

O significado da frase original ficará um pouco mais claro com a supressão da oração relativa «que se passe» e a substituição da oração subordinada adverbial «sem que...» por uma oração subordinada relativa:

(1) «Não há dia em que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

A negação marcada por «não nos ponha o coração aos pulos» pode ser transposta como oração subordinada adverbial de sem + infinitivo ou sem que + conjuntivo:

(2) «Não há dia (que se passe) sem a corrida presidencial nos EU nos pôr o coração aos pulos.»

(3) «Não há dia (que se passe) sem que a corrida presidencial nos EU nos ponha o coração aos pulos.»

Tanto em (2) como em (3), a oração principal é negativa – «não há dia que passe» –, tal como a subordinada – «sem a corrida....» ou «sem que a corrida...». Neste caso, «[...] as duas negações anulam-se e a oração subordinada passa a designar uma situação que efetivamente aconteceu» (Gramática do Português, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2027).

Contudo, é também possível inserir o advérbio não na oração subordinada, sem alteração de significado:

(4) «Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

Em (4), a segunda ocorrência de não tem caráter expletivo1, isto é, empregando terminologia gramatical mais tradicional, funciona apenas como expressão de realce (cf. Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967).

 

1 Na Gramática do Português (p. 480/481) inclui-se um caso como o aqui discutido: «não se passa um único dia sem que as federações do patronato não façam declarações alarmistas». Com este exemplo, ilustra-se na obra citada um tipo de negação a que se chama negação expletiva redundante, a qual consiste em o operador negativo não poder «[...] ser caracterizado como uma espécie de duplicação relativamente a alguma expressão de caráter igualmente negativo ocorrente no contexto – por exemplo, um operador de negação oracional [por exemplo, sem]» (idem, ibidem). 

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