O uso do gerúndio é aceite em português, e as frases estão corretas.
Esta forma verbal utiliza-se em várias situações. Nos casos em que o predicado da oração é uma forma simples do gerúndio, como em «cintilando no escuro», está-se perante uma oração gerundiva. Este tipo de orações «exprime a simultaneidade do estado de coisas nela descrito relativamente ao intervalo de tempo em que se situa o estado de coisas da outra oração»1. Portanto, nos exemplos apresentados pelo consulente, a colocação do verbo cintilar no gerúndio serve para indicar a ocorrência desta situação ao mesmo tempo que outras.
Em «os olhos cintilando no escuro» e «os punhais cintilando na escuridão», o gerúndio cintilando também caracteriza os nomes «olhos» e «punhais», ou seja, modifica-os. Note-se, contudo, que o tipo de estruturas apresentadas pelo consulente são consideradas, no discurso purista, como «construções afrancesadas» e preceituam-se construções alternativas, por meio de um adjetivo ou de uma oração subordinada adjetiva relativa, como a seguir se ilustra (para facilitar a análise, excluem-se as ocorrências do artigo definido os2):
(1) «olhos cintilando no escuro» = «(olhos) cintilantes no escuro»/«(olhos) que cintilavam no escuro»
(2) «punhais cintilando na escuridão» = «(punhais) que cintilavam na escuridão».
No entanto, há muito tempo que se contesta a censura sobre «o poder caracterizador» do gerúndio, sobre o qual o filólogo Manuel Rodrigues Lapa (1899-1989) se pronunciou favoravelmente3.
O gerúndio é, nos dias de hoje, sobretudo utilizado nas variantes brasileira e africana, em construções que, na variante europeia4, selecionam o infinitivo antecedido de preposição, como mostra o contraste entre os exemplos (3) e (4):
(3) «Você está entendendo o que estou falando?» (português do Brasil)
(4) «Está a entender o que estou a falar?» (português europeu)
O gerúndio é uma forma verbal que se constrói acrescentando ao radical, que mantém a vogal temática própria de cada conjugação, a terminação -ndo (amando, correndo, partindo). No português contemporâneo, distinguem-se duas formas do gerúndio: a forma simples (p. ex.: fazendo) e a composta, formada pelo gerúndio do verbo auxiliar ter e o particípio passado (p. ex.: tendo feito). É uma forma verbal antiga e comummente identificada na escrita, nomeadamente do século XIX devido à grande influência que o francês tinha no português, sendo possível reconhecer a sua utilização em obras literárias de autores consagrados, (p. ex., Eça de Queirós, Júlio Dinis e José Saramago), como ilustram os exemplos (5), (6) e (7):
(5) «Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro)
(6) «(...) disse-lhe o conselheiro, indo por trás dela» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais)
(7) «sem pronunciar palavra, apenas olhando fito o revisor» (José Saramago, História do Cerco de Lisboa)
1. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, pp. 725-726
2. Nas frases em questão, omite-se a preposição com quer em «os olhos cintilando no escuro» quer em «os punhais cintilando na escuridão», que se interpretam como «com os olhos cintilando no escuro» e «com os punhais cintilando na escuridão». Esta omissão aparece não raro em textos escritos nos séculos XIX e XX, ao que parece, por influência do francês, muito embora também possa encontrar-se em textos de períodos anteriores (ver Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Pátrio, 1.º volume, 1954-1956, p, 912).
3. Ver Manuel Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa (Coimbra Editora, 1979, pp. 213/214). O gerúndio "caracterizador" também é aceite por M. Said Ali, Gramática Secundária da Língua Portuguesa (Edições Melhoramentos, 1965, p. 182). Sobre os juízos puristas a respeito deste uso, ver Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades, 2.º volume, 1958, p. 42.
4. Apesar de não ser tão comum como nos usos do português do Brasil, o gerúndio é frequentemente utilizado na variedade europeia nos chamados dialetos centro-meriodinais (regiões do Alentejo e Algarve) e dialetos insulares (arquipélagos da Madeira e dos Açores).
N. E. – Texto alterado em 22/11/2023.