DÚVIDAS

A propósito do pronome pessoal mim

Gostaria de pedir esclarecimento sobre algumas dúvidas relativas ao pronome “mim” e funções sintáticas. No tocante ao pronome, geralmente, desempenha a função de objeto indireto, claramente, com verbos que requeiram esse tipo de complemento. Contudo, uma inquietação surgiu-me quando encontrei a seguinte construção: «Ninguém mandou aqui a mim».

Primeiro, queria saber se a construção é gramatical e por que razão?

Segundo, gostaria que me esclarecessem a função sintática que o “mim” desempenha na construção em causa, pois, apesar de geralmente desempenhar a função de objeto indireto, parece-me que não é essa a função que lhe foi atribuída aqui.

Ainda na mesma linha, gostaria de obter algum julgamento sobre o uso da expressão «mulher de mim».

Por último, queria também poder perceber a função sintática dos argumentos verbais nos trechos que se seguem, obtendo, se possível, a respetiva justificação. a) «Nas cenas do Auto da Lusitânia atuam as personagens Todo o Mundo e Ninguém.» b) «Essa guerra acontece na cabeça dele.» c) «Jet Li atua em Os Mercenários

Antecipadamente obrigado.

Resposta

1. Em primeiro lugar, na variante europeia do português, não é verdade que o constituinte «a mim» seja geralmente o objeto (complemento) indireto.

Mim é a forma tónica do pronome pessoal com função de complemento oblíquo em «Ele duvida de mim; A Ana suspeita de mim; O meu pai decidiu por mim» ou com função de complemento agente da passiva em «Esta sopa foi feita por mim».

Podemos encontrar a expressão «a mim» como forma fática do complemento indireto em «Ele disse-me isso a mim e eu disse-te o mesmo a ti.

Em português europeu, a frase que apresenta: «Ninguém mandou aqui a mim» não é gramatical, dado que o verbo mandar é transitivo direto, logo pede complemento direto: Ninguém me mandou aqui.

Note-se que a colocação do pronome pessoal átono obedece a regras. Como o sujeito é um pronome indefinido, este obriga a que o pronome pessoal átono anteceda a forma verbal. A frase: *Ninguém mandou-me aqui é igualmente agramatical em português europeu. 

2. Na frase que o consulente pretende ver analisada o pronome pessoal átono -me desempenha a função sintática de complemento direto, dado que se reescrevermos a frase na terceira pessoa «Ninguém o mandou aqui», verificamos que o pronome pessoal átono é de complemento direto e não de complemento indireto. Já na frase Ninguém me telefonou daí, verificamos que, ao reescrevermos a frase na terceira pessoa: Ninguém lhe telefonou daí, o pronome pessoal átono desempenha a função sintática de complemento indireto.

Assim, as formas corretas de pronome pessoal átono para as funções sintáticas de complemento direto e indireto são –me,-te,-se/-o(-a)/lhe,-nos,-vos,-se/-os(-as)/-lhes. A função sintática correta depende do tipo de verbo da frase: se o verbo é transitivo direto, seleciona um complemento (objeto) direto (substituição da expressão nominal pelo pronome -o (caso acusativo).

Ex: «A Ana encontrou o João/ A Ana encontrou-o

Caso o verbo seja transitivo indireto, seleciona um complemento (objeto) indireto (substituição da expressão pela forma do pronome -lhe (caso dativo).

Ex: «A Ana telefonou ao pai/ A Ana telefonou-lhe.» 

3. Relativamente ao uso da expressão «Mulher de mim», tratar-se-á de uma expressão marcada no português de Moçambique, não obedecendo à norma culta difundida no próprio país.

A expressão «mulher de mim», em português europeu, não é gramatical.

         Ex: «A minha mulher foi hoje ao médico.»

               «*A mulher de mim foi hoje ao médico.» 

4. Nas frases apresentadas, o verbo atuar é transitivo indireto e seleciona complemento oblíquo (X atua em Y)…

a) Nas cenas do Auto da Lusitânia atuam as personagens todo o mundo e ninguém.

Reescrevo a frase apresentada pela ordem direta dos constituintes: «As personagens Todo o Mundo e Ninguém atuam nas cenas do Auto da Lusitânia.» Ao aplicarmos o teste sintático da pronominalização para identificação da função sintática, verificamos que a expressão só pode ser substituída por um pronome pessoal tónico de sujeito: «Elas atuam nas cenas de Auto da Lusitânia.»

Assim, a expressão nominal As personagens Todo o Mundo e Ninguém desempenha a função sintática de sujeito da frase.

O constituinte Nas cenas do Auto da Lusitânia é o complemento oblíquo, uma vez que o verbo não é intransitivo.

Na frase c),apesar de em «Os Mercenários» ser uma expressão elítica ( = no filme "Os Mercenários",  a análise é a mesma: o constituinte em «Os Mercenários» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Se utilizarmos o teste de identificação do complemento oblíquo da pergunta /resposta, verificamos que o constituinte não pode ser apagado: 

a) *O que se passa com o sujeito em «Os Mercenários»?

    *Atua.

a’) O que se passa com o sujeito?

      Atua em (na peça) «Os Mercenários». 

Na frase b), o verbo acontecer é intransitivo (X acontece) (vide Dicionário Aurélio XXI, Dicionário da Academia das Ciências, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, este último atesta a ocorrência de o verbo acontecer ser transitivo indireto quando é pronominal: Isso aconteceu-me.).

Apesar da presença recorrente de expressões temporais e locativas com o verbo acontecer, o verbo é intransitivo e a expressão locativa ou temporal pode ser apagada:

a) Isso acontecia muito nas aldeias (Nas aldeias, acontecia muito isso / Isso acontecia muito nas aldeias.)

b) A festa aconteceu no feriado (No feriado, a festa aconteceu / A festa aconteceu no feriado). 

Para a frase «Essa guerra acontece na cabeça dele», propomos a mesma análise, o constituinte sublinhado é um modificador do grupo verbal.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa