Da resposta em causa não se pode concluir que há menosprezo em relação aos dialetos do norte de Portugal – nem, já agora, pelos dialetos do sul e das ilhas, esquecidos na crítica que me é dirigida –, porque identificar e descrever um padrão de pronúncia não equivale a censurar ou a rejeitar outras realizações fonéticas. Se assim fosse, então, muito difícil seria elaborar estudos de dialetologia, os quais frequentemente se apoiam no contraste entre norma e os diferentes tipos de variação de uma língua, de que são parte os chamados falares regionais.
Esclareça-se igualmente que classificar outras pronúncias como não normativas não é consequência da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90). Pensá-lo é incorrer numa confusão, porque as modalidades consideradas regionais têm sido identificadas em áreas de funcionamento estritamente linguístico, como sejam a fonologia/fonética, a prosódia, o léxico, a morfologia ou a sintaxe. Se tem cabimento acusar o AO 90 de ignorar a diversidade regional da língua, convém perceber que essa exclusão não é de agora. Com efeito, trata-se de uma atitude que não só é antiga, como também se tem mantido inerente à normativização da língua, a qual, geralmente, passa por uma seleção de variadas formas de entre as que se desenvolveram e fixaram entre comunidade regionais, grupos sociais e situações de comunicação.
Quanto ao lisboetismo supostamente militante e perversamente invasivo subjacente à resposta em causa, talvez o consulente queira evocar as chamadas atitudes linguísticas, que podem traduzir-se na valorização arbitrária (positiva ou negativa) de usos e subsistemas linguísticos. A fixação da norma não é incompatível com a variação sempre existente num sistema linguístico; e tem sido graças à atividade de descrever essa diversidade que muitas vezes se contesta o ascendente da norma que toma por modelo o chamado dialeto lisboeta. Esta constatação, pela mesma lógica, tornaria igualmente discutível a eventual primazia de outro dialeto que não o chamado "lisboeta" sobre o todo nacional – por exemplo, outro mais conservador, como se julga ser qualquer um entre os dialetos setentrionais –, ou sobre o conjunto dos países em que o português tem estatuto oficial.
Convém, portanto, insistir que, numa perspetiva atual e aberta dos usos de uma língua como o português, que tem uma longa história normativa, se tem vindo a aceitar outras pronúncias – das mais conservadoras às mais inovadoras. No caso vertente, em Portugal, o par gráfico ei conhece realizações fonéticas que podem ir do "êi" (em transcrição fonética [ej]), que se conserva efetivamente em muitas regiões portuguesas, sobretudo no norte e centro-norte (cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 97), ao monotongo "ê" (transcrito [e]), registado entre muitos falantes da parte meridional do território. Nesta gama, insere-se a variante "âi" – em alfabeto fonético [ɐj] –, tida como lisboeta, ainda que ocorra igualmente noutras regiões de Portugal, como o linguista português Lindley Cintra observou em tempos no estudo que intitulou "Os ditongos decrescentes ou e ei: esquema de um estudo sincrónico e diacrónico" (in Estudos de Dialectologia Portuguesa, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1983, pág. 421), numa passagem que vem muito a propósito aqui citar2:
«[...] Quanto a este último [o ditongo ei], apenas há a assinalar que, em toda a zona do norte e do centro de Portugal, em que ele se mantém, é mais frequente encontrá-lo realizado na form [ại̯] que apresenta em Lisboa, ou pelo menos nas formas [ęi̯] com [ę] aberto ou [ei̯] com [e] médio, do que na forma [ẹi] com [ẹ] fechado. Esta encontra-se principalmente representada no falar das classes cultas do Sul do país (como no das classes cultas brasileiras[...].
Muito difícil me parece vir a assinalar, dentro da vasta zona centro-setentrional, zonas de [ại̯] opostas a zonas de [ęi̯] e de [ei̯]. As três pronúncias estão tão próximas que é frequente conviverem na mesma localidade ou aparecerem em localidades vizinhas [..].»
A dialetologia atual será com certeza capaz de atualizar e até talvez corrigir o que Lindley Cintra considerou, descrevendo. Mas a passagem citada serve, sem dúvida, como convite à moderação quando se fazem juízos de valor acerca desta ou daquela pronúncia.
1 O estudo em referência foi publicado em Anais do Primeiro Simpósio de Filologia Românica (1958), Rio de Janeiro, 1970, pp. 115-134.
2 Os símbolos fonéticos empregados pelo autor citado não são os comummente usados hoje. Assim: [ại̯] corresponde a [ɐj], o chamado "âi" lisboeta; [ęi̯], a [ɛj], como em anéis; [ei̯] e [ẹi] a [ej], isto é, um "e" que é ou soa fechado seguido da semivogal [j].