Em Hipocritões e Olhigarcas. Passado e Futuro das Guerras Culturais, o historiador e político Rui Tavares reúne as aulas que deu «num curso sobre "Guerras Culturais: Outrora e agora, aqui e lá fora" na escola online da Tinta-da-China e do Público, acrescentado algumas reflexões que foram publicadas em crónicas da Folha de São Paulo e do Expresso» (p. 5). Não sendo obra que se refira diretamente às línguas ou especificamente ao português, revela-se, contudo, como um documento muito interessante do ponto de vista da informação extralinguística associada ao significado do termo «guerra cultural», de grande atualidade nas colunas de opinião da comunicação social em português.
Não falando da figura da capa, que anuncia o fio condutor da argumentação desenvolvida ao longo do volume, quer o título quer o subtítulo – Passado e Futuro das Guerras Culturais – são intrigantes e pedem esclarecimento. O título Hipocritões e Olhigarcas exibe duas palavras inventadas com intuitos críticos, que não são aqui divulgados para não anular o suspense só resolvido no final do livro. Mesmo assim, sem querer levantar completamente o véu, a sua morfologia entende-se por um jogo que envolve, no caso de "hipocritão", uma amálgama com termos pejorativos terminados em -ão, e "olhigarca" relaciona oligarca com os atuais algoritmos e, literariamente, à visão profética de George Orwell no romance 1984.
Quanto a «guerra cultural», expressão incluída no subtítulo, é tradução da expressão «culture war», muito presente na discussão em língua inglesa sobre direitos humanos, designadamente os de minorias. Como se tem apontado em páginas da Internet e em obras similares sobre este assunto, «culture war» será um decalque do alemão Kulturkampf, literalmente «combate pela cultura» e referente ao conflito que, no século XIX, de 1871 a 1879, opôs a cultura laica do Estado alemão à influência da Igreja Católica para controle da educação e doutras áreas da vida social alemã1.
Hipocritões e Olhigarcas está escrito num estilo ágil, tornando acessível uma reflexão de certa complexidade sobre a história da cultura, que também manifesta um posicionamento claro quanto à atual situação política nacional e internacional. Ao preâmbulo ("Labirintos e asteriscos", p. 9-21), que evoca tempos míticos, das raízes helénicas da cultura ocidental, seguem-se cinco capítulos: "A invenção de Deus e do diabo" (pp. 23-53), "Filhos do Terramoto, usurpadores do trovão" (pp. 53-81), "O caos dos casos" (pp. 83-113), "A rádio de Roosevelt contra a telefonia totalitária" (pp. 115-140) e "presente e futuro das guerras culturais" (pp. 140-170). A conclusão ("A mudança mudou", pp. 171-176), bastante crítica da atuação de Donald Trump e Elon Musk, faz eco de um conhecido soneto de Camões. Uma sucinta e muito útil secção de "Comentários e sugestões de leitura" (pp. 177-183) remata o volume, em cujas páginas se encontram ainda pequenas notas para contextualização de factos e debates, bem como ilustrações que motivam comentários e apoiam a própria argumentação no corpo do texto.
Enfim, este é um livro a que não se fica indiferente. Pode discordar-se da visão veiculada, mas é inegável o valor da sua reflexão crítica, em tempos em que tudo adquire cor política, até mesmo quando, por exemplo, falamos de língua e gramática.
1 Sobre o conceito de «guerra cultural» e da sua projeção nas preocupações da opinião pública em Portugal, mencione-se outra obra igualmente saída em 2025: João Ferreira Dias, Guerras Culturais. Os Ódios que nos Incendeiam e Como Vencê-los, Guerra e Paz, 2025.
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
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