A guerra da Ucrânia tem acontecido não só fisicamente, através da ação de forças militares, mas também por meio da construção de um cuidado e intencional quadro lexical. As palavras e expressões escolhidas para referir os acontecimentos denotam uma visão do mundo que se quer impor e veiculam recortes da realidade que exigem e justificam posicionamentos tanto políticos como éticos e morais.
Num dos lados do conflito deflagrado na madrugada de 24 de fevereiro de 2024, a Rússia começou por descrever a sua intervenção como uma «operação militar especial». A expressão envolve, desde logo, um posicionamento perante os factos que começaram a ter lugar na Ucrânia, pois o termo «operação militar» refere uma ação coordenada em resposta a uma situação e «que visa resolver alguma questão em nome da proteção do Estado» (in Wikipédia). Foi como o presidente russo Putin a justificou, desde a primeira hora: uma ação de desmilitarização e de desnazificação da Ucrânia. Esta cuidada seleção vocabular encontra-se ao serviço da criação de um recorte de realidade no qual a Rússia é um país que se vê obrigado a desenvolver uma iniciativa bélica em defesa dos valores morais e do próprio povo ucraniano que quer pertencer à Rússia e que, por isso, é ameaçado e torturado. A Rússia não é um país que age mas que reage.
Esta conceptualização ilustrada pelo léxico coloca assim a Rússia do lado do Bem e a Ucrânia do lado do Mal, o que vem justificar a adoção do verbo defender. Nesta perspetiva, a Rússia não está a atacar (ação negativa, de conotação pejorativa), mas, sim, a defender o seu país, as fronteiras que lhe foram usurpadas pela Ucrânia e os povos que se sentem russos e que querem voltar a sê-lo oficialmente. O verbo defender veicula uma ação conotada positivamente, de valor eufórico e moralmente justificada, que se associa ao conceito de fragilidade: os maus atacam e os indefesos defendem-se. Por essa razão, também, a Rússia adota na sua retórica a expressão «batalha existencial», que convoca o conceito de um país que, debaixo de ataque, luta para sobreviver. E é neste contexto de defesa e proteção do solo pátrio que Putin assumiu em discurso, um ano após a invasão, estar numa situação de «guerra quase real». O recurso, pela primeira vez, ao termo bélico explícito, que implica assumir uma campanha militar e a luta armada contra outra nação, encontra-se, deste modo, perfeitamente justificado no quadro da defesa perante os ataques da Ucrânia e do Ocidente em geral, numa inversão da realidade construída pelo discurso oficial russo.
Do lado da Ucrânia, o presidente Zelensky e os países apoiantes do posicionamento do país perspetivam a situação como uma invasão de território, numa visão do mundo que é exatamente oposta à veiculada pela Rússia. Por essa razão, o léxico usado é, em parte, coincidente: a Ucrânia também «é atacada» e também se defende, ao passo que a Rússia faz ataques, «ofensivas militares» e comete «crimes de guerra».
Enquanto a Rússia cria um quadro ético-moral da nação que age em defesa de valores morais e de um território que é seu, a Ucrânia cria o quadro da defesa do solo pátrio associado à ideia de povo frágil e indefeso, que «luta pela sobrevivência» e que precisa de ajuda para continuar a existir e para evitar o extermínio.
Este quadro de subtilezas lexicais implica que a adoção de uma determinada seleção lexical convoca necessariamente uma dada visão dos acontecimentos que nunca poderá ser neutra ou objetiva. Estar-se-á sempre a adotar o ponto de vista de quem ataca ou de quem defende. E será difícil perceber qual a versão do mundo em que estas palavras são usadas de forma objetiva e realista?