No seu espaço de análise política na CNN Portugal (veja-se o minuto 13'06 do vídeo, mais abaixo), em 2 de fevereiro de 2025, o ex-ministro Paulo Portas ofereceu um fragmento linguístico que merece uma reflexão mais aprofundada. Comentando à imposição do Presidente norte-americano Donald Trump de taxas comerciais aos aos produtos vindos da China e do Canadá, Paulo Portas afirmou que era «um pedaço estranho» o facto de Trump «atirar primeiro aos aliados do que aos seus rivais». Esta expressão, parecendo pouco convencional, chama a atenção, despertando curiosidade sobre o seu significado e sobre as intenções de quem a usa.
Interessa destacar, porém, que o uso de «um pedaço estranho» em 2025 não é um caso isolado em Portas. Já em 2011, recorria a construções semelhantes, como quando afirmou que era «um pedaço estranho que se pratique os sacrifícios e austeridade para uns e que em relação a outros o Governo seja condescendente» (Portas acusa Governo de «falta de respeito», CNN Portugal). Essa consistência estilística de Portas sugere que, embora a expressão possa soar inusitada a alguns, tem raízes mais profundas na língua portuguesa, revelando uma construção que, por mais rara que seja, é válida.
O termo pedaço, conforme o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa e a Infopédia, refere-se a uma parte ou fragmento de um todo. É precisamente esse sentido de «parte/bocado» que Portas utiliza para destacar um aspeto específico do comportamento político de Trump, isolando-o para análise. O uso de pedaço seguido de um adjetivo – como em «um pedaço estranho» – não é gramaticalmente incorreto, embora, de facto, soe incomum a muitos1. Na verdade, é equivalente a «um bocado», locução adverbial que significa «um pouco, um tanto», como em «estava um bocado abatido (ibidem).
O uso de pedaço com adjetivos parece mais patente em certas expressões regionais, como no Baixo Alentejo, onde se ouvem frequentemente frases como «um pedaço difícil» ou «um pedaço estranho» no contexto da oralidade quotidiana. Tais expressões não são apenas formas coloquiais de falar, mas evidenciam a flexibilidade da língua, que permite construções que são perfeitamente naturais para algumas regiões, mas incomuns para outras.
Assim, o «pedaço estranho» de Paulo Portas não se resume a um simples fragmento de discurso político. É também um eco das múltiplas camadas da língua portuguesa, que atravessa séculos e territórios, da literatura clássica à oralidade quotidiana. Ao utilizá-lo, Portas não apenas chama a atenção para uma peculiaridade na postura de Trump, mas também nos convida a refletir sobre as palavras e o seu uso.
1 Há exemplos literários da sequência formada por «um pedaço» e um adjetivo, mas são casos em que «um pedaço» significa «durante alguns momentos (exemplo (i)) e «trecho, parte, fragmento, bocado» (exemplos (ii) e (iii)):
(i) «Andaram um pedaço calados, até que Passarinho falou» (José Lins do Rego, em Fogo Morto, 1943);
(ii) «glosador vasculhava na memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu» (Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, refere , isolando um fragmento de texto.
(iii) «Um dia, no meio dos outros, aparece um pedaço grande, que se recusa a sair facilmente» (Cecília Meireles, em Olhinhos de Gato, 1939).
Sobre o uso de «um bocado» com adjetivos, consultar Margarida Duarte, I., & Carvalho, Ângela. (2017). "Conversa oral informal e linguagem vaga - 'um bocado' e 'um bocadinho': contributos para o ensino do português língua estrangeira", Portuguese Language Journal, 11, pp 146-164.