O teletrabalho é uma variante do trabalho que a pandemia generalizou. Discute-se hoje se o teletrabalho veio para ficar e se este não, afinal, uma nova forma de «trabalhos forçados», ou a nova galinha dos ovos de ouro das empresas. O que é certo é que os teletrabalhadores afirmam que trabalham muito mais horas em casa do que no escritório.
A palavra trabalho teve origem em tripalium, nome latino de um instrumento de tortura, formado por três estacas de madeira que eram unidas de forma cruzada e cravadas no chão. Ao tripalium prendiam-se as pessoas que seriam castigadas pelo recurso a crueldades físicas várias. A inquisição soube bem reconhecer as virtualidades deste artefacto e recuperou-o como instrumento de tortura.
O que é facto é que o trabalho tem na sua etimologia o sangue da sevícia e do padecimento. Aliás, não esqueçamos que na Roma da Antiguidade trabalhava quem era escravo, ou seja, o trabalho era uma condição aliada à perda de liberdade.
A escuma do tempo e a mudança social tomaram em mãos uma verdadeira operação de cosmética ao conceito de trabalho que de escravo ascendeu aos títulos aristocráticos e se convenceu que enobrece o homem e que o eleva acima das outras criaturas. A formiguinha venceu, mesmo, a cigarra, como nos conta a fábula!
O ócio, antónimo de trabalho, que era tido como arte de fruição existencial, caiu na lama e foi crucificado como pecado mortal por mãos dos seguidores acéfalos do trabalho, que esfregou as mãos de contente! Os desocupados, os inativos e os preguiçosos são os novos párias da sociedade, que acusa e rejeita todos aqueles que não se dão a grandes esforços e que não contribuem para a dita produção de riqueza (própria ou alheia, bem entendido seja).
E é assim que o trabalho, erguido à condição de deus salvador da condição humana, não deixa de mostrar debaixo da capa brilhante as puas que amarram o homem. Toda a depuração de sentidos que a palavra sofreu não erradicou a realidade em que teve o berço. O tripalium continua lá, no cerne do seu ADN (mais para uns do que para outros, é certo). Suga-nos a humanidade, mas já não vivemos sem ele e sofremos amargamente se o perdemos. O mesmo trabalho que assumiu a dignidade da nobreza rebaixou-nos à condição de escravos, em sofrimento, mas resignados, quase a achar que somos felizes por ter trabalho.
Safaram-se alguns: os chicos-espertos e aqueles para quem se trabalha.
(Áudio disponível aqui)
Apontamento da autora no programa Páginas de Português, emitido na Antena 2, no dia 5 de julho de 2020.