Do “vírus chinês” ao “vírus estrangeiro”, o discurso populista e xenófobo tem fulgido em todo o seu esplendor. Mas o inferno é ele, esse discurso, não o Outro, esse que também somos nós. Se “estamos no mesmo barco” como diz o mantra da agregação de vontades para fazer frente ao covid-19 — aqueles que percebem o perigo —, o festival de inanidades também assentou arraiais.
O medo grassa, a máscara protege e o lavar de mãos vai muito para além do que fez Pôncio Pilatos. Depois há os diminuitivos insanos: a gripezinha e o resfriadinho. E o deus Pã, o apocalipse, o abismo, a magna ciência, a vacina.
Ao celebrado “o meu reino por um cavalo” corresponde agora o colapso da economia, a virose dos tão nervosos mercados, o petróleo e o barril, as crianças e os velhos, os ventiladores, o sopro que pode faltar. Os miasmas de antanho travestem-se de novas palavras. As cidades invisíveis de Italo Calvino são agora as cidades desertas e as varandas e as janelas e a música e o mundo virtual.
A uberização do trabalho chegará na próxima acalmia. Este é o admirável mundo novo onde o grande irmão espreita. Onde há o Estado e a guerra, a linha da frente e a retaguarda, o confinamento e a quarentena. A superfície é lisa e a morte expressa-se em números. Usa-se muito a língua inglesa: burnout, lockdown, lay off e há curvas e gráficos, quedas e subidas em V, uma orografia onde a grande ambição é estar no planalto. No cume, Zaratustra espreita.
Cf. Depois do ‘burnout’, a sisifemia invade empresas e atormenta trabalhadores
Texto do autor lido no programa Páginas de Português, emitido pela Antena 2, no domingo, 19/04/2020, sobre a elaboração de um glossário de termos associados à pandemia do novo coronavírus e à correspondente crise sanitária que assola o mundo.