«(...) Tal como no assédio, é preciso que os que se sentem lesados avancem, contem as suas histórias e mostrem os seus papéis. O ar ficará mais limpo. (...)»
Nunca tinha ouvido «extractivismo intelectual». É uma expressão nova para um problema velho. Vantagem em relação ao assédio sexual? É mais fácil de provar.
Dizem-me que na academia há pessoas nervosas com o caso Boaventura de Sousa Santos porque imaginam que a sua vez chegará em breve. Provavelmente é o que vai acontecer. Tem sido esse o padrão noutros países.
Enquanto esperamos — por novos testemunhos ou novos casos —, seria útil olhar para as acusações relativas à sua prática académica tout court, pelo menos as destacadas no livro Sexual Misconduct in Academia (Routledge, 2023).
Num capítulo desse livro, três antigas investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra — a belga Lieselotte Viaene, professora na Universidade Carlos III, Espanha; a portuguesa Catarina Laranjeiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e a norte-americana Miye Nadya Tom, professora na Universidade de Nebraska, EUA — acusam o sociólogo e director emérito do CES de aproveitamento intelectual.
Não sei se é uma acusação mais grave do que a de assédio sexual. Mas é uma mancha terrível que nenhum académico quer. Fere — e pode destruir — o próprio corpo de trabalho, a essência do que se faz numa profissão.
Também não sei se é verdade. Boaventura pode ter agido sempre de forma correcta em relação aos direitos autorais dos outros, pode ter agido bem só às vezes ou o aproveitamento intelectual pode ter sido o seu padrão.
Muitos académicos dizem que este é um velho problema da academia, cheio de armadilhas, falhas de comunicação, traições e vaidades, e que provoca atritos diários. Dizem também que são conhecidos, nas várias áreas, os investigadores que têm por hábito atrair para si os créditos dos outros.
Há em todas as profissões. Editores de jornais que acrescentam o seu nome à assinatura de notícias escritas pelos colegas jovens. Arquitectos donos de ateliers que registam a autoria de projectos só com o seu nome. Investigadores que se sentem injustiçados quando vêem o seu nome relegado para os agradecimentos no livro para o qual trabalharam meses.
O que parece óbvio é que, olhando para as duas questões éticas em debate, é mais fácil provar o aproveitamento intelectual do que o assédio sexual. É difícil e trabalhoso, mas é realista esperar uma conclusão taxativa, sem ambiguidade e sem margem para dúvida.
Falo do «extractivismo intelectual», expressão que desconhecia até esta semana e que é usada pelas investigadoras no ensaio que deu origem a esta tempestade.
Percebe-se a origem: há o uso sistemático dos recursos naturais e há o uso sistemático dos recursos intelectuais. Recursos dos outros, bem entendido, em regra, os mais fracos. A expressão vem da crítica moderna ao colonialismo e ao uso que os impérios coloniais fizeram dos recursos naturais das colónias.
Boaventura, dizem as investigadoras, «poderá ser visto como um especialista em extractivismo intelectual». Na prática, acusam-no de duas coisas: 1) publicar artigos e capítulos de livros usando o trabalho feito por jovens assistentes do CES a quem não pagou ou pagou mal e; 2) assinar textos sozinho, sem reconhecer os assistentes como co-autores e relegando-os para a página dos agradecimentos ou as notas de rodapé.
As investigadoras dizem que «esta má conduta explica como os professores-estrelas conseguem escrever por ano dezenas de artigos e capítulos de livros assinados só com o seu nome, ao mesmo tempo que dão conferências e masterclasses pelo mundo fora». Uma alta produtividade só possível graças ao «extractivismo intelectual».
Antes da questão técnica (como provar), a questão ética (as boas práticas). Falei com académicos experientes, incluindo catedráticos e directores de projectos com financiamentos de milhões de euros. Há regras simples, conhecidas e consensuais.
Por exemplo: se um investigador assistente fez um mestrado ou um doutoramento sob a orientação do mestre e se partes desse trabalho aparecem num texto do mestre no qual o assistente não é identificado como co-autor, o mestre está a apropriar-se do trabalho do assistente. É o «extractivismo intelectual».
Claro que à volta de alguns mestres célebres há jovens investigadores que “disputam o direito a levar a mala”. Sabem que a associação a um mestre com fama internacional cria currículo e ajuda a conseguir um contrato numa universidade. Estou a citar um académico que, há uns anos, num jantar do CES em Coimbra, viu com espanto jovens assistentes citarem à mesa, em voz alta, passagens de artigos de Boaventura, num esforço de lisonja ao chefe, ali sentado, que muito o impressionou.
Estou também a pensar na frase que outro académico me disse ontem: “Boaventura era um passaporte para uma vida boa.” Não há nada de errado em ser-se discípulo, seguidor e intérprete de um guru. O aprendiz vai mais longe, mas também leva consigo as ideias do guru, que assim vão mais longe também. Os dois ganham.
Isto ajuda a explicar algumas coisas, mas é lateral à tempestade.
De regresso à técnica. Como dizem os americanos, não é preciso um cientista espacial. As investigadoras falam em “inúmeras histórias”. Pois bem, veja-se uma a uma. Basta seguir o paper trail, ou seja, percorrer os documentos que mostram o historial de cada texto.
Hoje os bastidores dos textos têm uma pegada informática automática, inalterável e fácil de reconstituir.
Pode começar-se por perguntar quem se sente lesado. Seria o mais simples, pois cada investigador mostraria o que fez e o que, do seu trabalho, foi usado nos textos publicados por Boaventura. Muito, pouco, nada? E, a seguir, como foi registada a autoria.
Se ninguém se chegar à frente, pode analisar-se artigo a artigo, procurar os nomes nos agradecimentos e notas de rodapé. Isso implica contactar as pessoas, comparar e cotejar os textos. Há quem queira participar e quem não queira. Os que querem têm as provas.
Se foi publicada a tese de mestrado ou de doutoramento, é só comparar. Há bons softwares. Há partes iguais num artigo do mestre? São grandes ou pequenas?
Claro que, em ciência, vale o que se publica. Mas mesmo nos eventuais casos de assistentes que não publicaram, é possível provar a sua participação.
Imagine que um texto foi escrito a quatro ou seis mãos. Se foi no Google Docs — muito usado, pois permite várias pessoas escreverem e editarem um mesmo texto, acessível online e guardado numa nuvem —, basta ver o registo das acções. Tudo fica como marca de água: x escreveu o bloco tal no dia tal, à hora tal; y idem aspas; x de novo, etc. Se foi por email, há registo dos envios.
Explica uma académica: «Quando os jovens investigadores que orientamos são muito bons, incentivamo-los a publicar. A regra é assinarmos juntos: o jovem em primeiro lugar, o mestre em segundo. Sem o mestre, o trabalho não existiria (é o mestre que consegue financiamento para o projecto e é o mestre que guia o processo intelectual). Mas sem o investigador, não haveria aquele trabalho. Além disso, interessa ao jovem assinar em co-autoria com um mestre, pois é isso que lhe vai abrir portas, é um selo de qualidade. Nestes casos, a co-autoria é justa e correcta para os dois.»
Diz outra académica: «Quando não é assim, é porque o trabalho de equipa é só fachada.»
A questão é simples: dá trabalho, mas é possível reconstituir os projectos e os “bastidores” dos textos e ver quem fez o quê.
Outra coisa: tal como no assédio, é preciso que os que se sentem lesados avancem, contem as suas histórias e mostrem os seus papéis. O ar ficará mais limpo.
Cf. A notícia que nos faz olhar para a misoginia na academia. Vai doer + Manual de sobrevivência para vítimas de assédio
Texto da jornalista Bárbara Reis, transcrito com a devida vénia, do diário Público de 5/04/2023. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.