« (...) Vivendo nesse tal interior de São Paulo, rodeado de brasileiros por todos os lados, tornei-me um bilíngue de uma língua só. No elevador, no café, no barbeiro ou no ginásio (academia) tenho de falar abrasileirado, devagar, devagarinho, com as vogais ritmadas e as consoantes tropicalizadas e os tradicionais "imagina", em vez do "de nada", e "falou!", como forma de despedida. Devo traduzir e traduzir-me mentalmente. Imediatamente. Caso não o faça, o castigo é uma chuva torrencial de "oi, oi, oi", a interjeição local para "não entendi, importa-se de repetir?". (...)»
Uma das pequenas irritações que um português a morar no Brasil sente no dia a dia é ligar a televisão e ouvir um filme de Hollywood, ou de outro lugar que o valha, dobrado – dublado – em português local.
Por isso, num destes dias, senti, num zapping qualquer, uma genuína satisfação ao ver, finalmente, as por aqui tão raras legendas a acompanhar uma fita.
Mas logo veio a desilusão; não era uma fita qualquer, era Tabu, o portuguesíssimo filme do portuguesíssimo Miguel Gomes, falado num portuguesíssimo sotaque de Lisboa.
Que país é este – e que estranha relação tem com o português europeu – que precisa dublar um filme falado numa outra versão da mesma língua?
A explicação começa, claro, pela fonética do português europeu, com vogais fechadas e um chiado permanente de esses, de jotas e de cês falado a alta velocidade, de facto difícil para quem não o conheça – e é aqui no «não o conheça» que está a chave.
Afinal, em Portugal, na sua macrocefalia lisboeta, Xailes Negros, a série dos anos 80 do século passado de Zeca Medeiros, também foi legendada no continente para desconsolo do povo de São Miguel, nos Açores, onde a ação se ambientava. Porque o sotaque açoriano cerrado é, de facto, impenetrável para quem «não o conheça».
Os brasileiros, salvo exceções, sobretudo no Rio de Janeiro e noutros pontos do país ainda com cultura portuguesa muito viva por força das colónias de emigrantes, não têm contacto com o sotaque europeu da sua própria língua em praticamente nenhuma circunstância. Não o conhecem.
E a cultura popular audiovisual portuguesa, os filmes, a música contemporânea, chega tanto ao Brasil como a austríaca ou a sueca – e isto não é uma caricatura. Logo, quando um brasileiro, digamos, do interior de São Paulo ouve um português falar no seu sotaque natural, pode estar a ouvir aqueles sons pela primeira vez ou, no máximo, segunda ou terceira. Quem nasceu nos anos 1970 em Portugal, pelo contrário, cresceu a ouvir telenovelas da Globo e jogadores de futebol a explicar-se após o apito final.
Por isso, vivendo nesse tal interior de São Paulo, rodeado de brasileiros por todos os lados, tornei-me um bilingue de uma língua só. No elevador, no café, no barbeiro ou no ginásio (academia) tenho de falar abrasileirado, devagar, devagarinho, com as vogais ritmadas e as consoantes tropicalizadas e os tradicionais «imagina», em vez do «de nada», e «falou!», como forma de despedida. Devo traduzir e traduzir-me mentalmente. Imediatamente.
Caso não o faça, o castigo é uma chuva torrencial de «oi, oi, oi», a interjeição local para «não entendi, importa-se de repetir?».
Em casa, casado com uma brasileira (mas com 11 anos de Portugal) e com filhas gémeas de duplo passaporte, não se pense que é muito mais fácil. Às vezes, quando as duas não se comportam, ouvem, por exemplo, sonoros «arruma-me lá isto agora, pá!».
Que perde todo o dramatismo quando do outro lado vem a resposta «papai, o que quer dizer 'pá'?».
Nem o pá, bengala tão eficaz em momentos de extrema emoção, tem, pois, qualquer valor do lado de cá. Não vale um euro, um real, um tostão.
Entretanto, com o tempo, as duas também se tornaram meio "bilingues" pelo contacto paterno, e já não preciso dizer constantemente geladeira em vez de frigorífico, que no Brasil são os grandes armazéns de carne, ou falar sempre «você isto, você aquilo», só porque ninguém aqui usa o tão lusitano tu.
Mas será? A avó delas, gaúcha, isto é, natural do Rio Grande do Sul, é «tu cá, tu lá», um hábito que os brasileiros mais meridionais mantêm em comum com os portugueses. Se bem que a qualquer momento pode perguntar-me «tu sabes onde estão as gurias?», sendo certo que gurias é, em "gauchês", o mesmo que meninas.
Não basta, portanto, para quem vive aqui, habituar-se às gírias paulistas ou àquele famoso erre caipira a colar-se ao céu da boca, também há que ter conhecimentos vastos de gauchês, de nordestinês, de onde chegam muitos migrantes para trabalhar na restauração com os seus vixe e ôxente, e de mineirês, o sotaque dos vizinhos do lado, para quem coisa é trem e Joãozinho é Joãozim – «Que trem é esse aí, Joãozim?»
Entretanto, um correspondente no Brasil, ao contrário de outros compatriotas a trabalhar no país, tem de manter o português de Portugal oleado – afinal, escreve todos os dias nele.
Mas não sem dificuldade. O corretor ortográfico, nascido e criado no Brasil, aproveita a mínima distração para substituir económico por econômico e facto por fato.
E a própria gíria da política de Brasília confunde. A frase «Sérgio Moro, ao deixar de ser ministro, fica mais longe de ser ministro», aparentemente, não tem sentido, mas quer dizer que ao deixar o Ministério da Justiça, ele hipoteca a ambição de se tornar um dos juízes do Supremo, que aqui são chamados de ministros.
Para não chamar os juízes de ministros nem deixar escapar um econômico, vale-me a ajuda inestimável da Helena Tecedeiro, a editora de todas as horas na redação.
Mas nas curiosidades sobre «esta língua que nos desune», parafraseando o sempre certeiro Millôr Fernandes, há outras questões que se levantam. Um português no Brasil, onde os filmes da sua terra são legendados, sofre para ser entendido – mas e o inverso?
«Acontece algo parecido», diz-me a pesquisadora Fernanda Sarkis, brasileira a viver em Amarante. «A sensação que tenho é a de reaprender a minha língua materna: o Caetano traduz bem quando diz "gosto de sentir a minha língua a roçar a língua de Camões".»
«Não é outra língua mas é... porque a língua expressa sobretudo o quotidiano com referências numa base de experiências locais, e eu, que trabalho com a escrita, como assessora de comunicação e investigadora da Faculdade de Letras do Porto, é como se acordasse numa realidade paralela em que reconheço os códigos mas tenho de reorganizá-los para conseguir ser compreendida como pretendo.»
Fernanda sofre sobretudo com o tratamento por você – «ainda não entendi se ofende ou se agrada» –, o que lhe causa nervosismo. «E nervosa nem falo brasileiro, falo direto goianês», diz, aludindo ao estado, Goiás, da sua origem.
Felipe Zylberstajn, por sua vez, é a exceção que confirma aquela regra descrita acima de que os brasileiros não consomem cultura portuguesa, a não ser a clássica obrigatória na escola. «Eu sou fã do Gato Fedorento, por exemplo.»
Mas o jornalista a morar em Seattle é, digamos, «um autodidata». «Comecei a escutar português através do Villaret a ler Pessoa no YouTube, depois, ainda no YouTube, lá por 2004, 2005, conheci o Gato Fedorento e, como achava muito engraçado, esforcei-me por entender, e a dificuldade não foi tanto o sotaque, porque sou de Florianópolis, Santa Catarina, onde, dizem, se fala parecido com o português europeu, mas mais as expressões ou o contexto das piadas», conta-me.
«De qualquer forma, de férias em Portugal em duas ocasiões diferentes com duas namoradas diferentes, ambas paulistas, nenhuma entendia quase nada», remata.
E será que as diferenças entre o português do Brasil e o português europeu não encontram paralelo noutras línguas?
«Acho que essas diferenças são, sim, mais acentuadas», resume-me Pablo Giuliano, um jornalista argentino que mora e trabalha em São Paulo.
«Para um hispano-americano entender um espanhol é muito mais fácil do que para um brasileiro entender um português, apesar de eu sentir dificuldades com algumas gírias espanholas e com alguns sotaques espanhóis e de nem sempre acompanhar o que falam chilenos ou mexicanos.»
«Mas, desde criança, um colombiano assiste filmes argentinos e mexicanos e ouve o telejornal espanhol, por exemplo, e essa mistura, habitua-nos o ouvido.»
Por outro lado, defende, «o Brasil autorreferencia-se o tempo todo, noto muito a falta de referências não só a Portugal mas também a Angola, a Moçambique, a Cabo Verde, mas não noto falta de referências ao Estados Unidos», conclui Giuliano.
Aproveitando a deixa, uma reflexão generalista, logo, injusta: o Brasil (ou uma certa "elite" – com muitas aspas – do Brasil) adora fazer o papel daquele adolescente que idolatra o rapaz mais popular, mais forte e mais rico da escola, e por isso faz tudo como ele, veste-se como ele, segue-o para todo o lado – esse adolescente popular, forte e rico são os Estados Unidos.
Perdido nessa adoração, o Brasil despreza os outros colegas, no caso os países sul-americanos, com quem tem muito mais afinidade. E sente uma certa falta de orgulho do pai, Portugal, que foi popular, forte e rico à sua maneira um dia, mas hoje, limitado à sua pequenez geográfica, é uma sombra daquilo que os Estados Unidos representam.
Por essas e por outras, não se consome cultura portuguesa atual no Brasil – e ninguém conhece o sotaque daí.
Já a americana é consumida de todas as maneiras, sobretudo na forma de filmes de Hollywood, mas mesmo assim é apenas o 53.º país do mundo na classificação no conhecimento de inglês. Talvez por esses filmes serem dublados.
Nada como ouvir uma língua para aprendê-la.
Por isso, sempre que apanho as minhas filhas a ver um filme dublado digo-lhes logo «escolham já a opção com legendas, pá». Elas, entretanto, já sabem que quando o papai diz «pá» é porque está «meio brabo».
Texto do jornalista português João Almeida Moreira, correspondente do Diário de Notícias, em São Paulo, com a data de 3 de maio de 2020.