«(...) E a humildade, senhores? Cultivemos a humildade. "É sempre bom ter dúvidas (e dar o benefício da dúvida aos outros, mesmo quando achamos que estamos certos) e ir investigar, para saber qual é, realmente, a forma mais correta e porquê. (...)»
A pandemia mandou-nos a todos para casa e revolucionou o modo como comunicamos. Passámos a escrever mais, mas estaremos a escrever melhor? O imediatismo das redes sociais e a evolução da comunicação expôs uma fragilidade que nos afeta a todos. E nem adianta negar: todos damos erros de português. E eles podem arruinar a reputação de uma pessoa e acabar com a credibilidade de um profissional.
«Cada vez mais preferimos a escrita. Basta ver que, quando um departamento comercial tenta vender os seus produtos ou serviços, o cliente pede quase sempre "ponha-me isso por escrito". Devíamos estar mais treinados e ter as nossas competências linguísticas mais desenvolvidas. Mas apesar de escrevermos muito, lemos [textos com] cada vez menos qualidade. Lemos muito, mas lemos muitas vezes erros», constata Sandra Duarte Tavares, professora e especialista em língua portuguesa.
E gera-se uma espécie de bola de neve: lemos mais, mas lemos mais palavras mal escritas e interiorizamo-las como corretas. Como explica Sandra Duarte Tavares, «as palavras têm uma imagem e, ao lê-las, registamos essa imagem e interiorizamo-la como correta».
«Há muitos textos mal escritos a circular por aí (em formato digital, mas também impressos), que provavelmente influenciam os seus leitores. Inclusivamente, há erros que as pessoas deixam de considerar como tal por causa da frequência com que os encontram. A sua generalização favorece a sua normalização. E isso não é uma novidade. É algo que acontece sempre, é uma característica das línguas vivas», acrescenta Sara de Almeida Leite, escritora e professora universitária.
A pressa, a distração e a ignorância
Sara de Almeida Leite assume que não tem uma atitude condenatória perante os erros com que se depara. Encara como desafio a procura de uma explicação para cada erro que lhe aparece à frente.
«Na oralidade, erramos, muitas vezes, por uma questão de facilitismo, no sentido em que a forma errada pode ser a mais cómoda, em termos de pronúncia (dizer "hades" é mais fácil do que dizer hás de; dizer "faria-nos" é mais simples do que dizer far-nos-ia). E a forma errada também pode ser a mais eficaz, por ser aquela que os nossos interlocutores entendem melhor, ou aquela que aceitam melhor. Se eu disser "dava-lhe mais jeito"1 [sic] estarei a ser mais clara, no fundo, do que se disser dar-lhe-ia mais jeito», diz a especialista.[1]
Mas há outras razões que Sara de Almeida Leite consegue encontrar para os erros que cometemos: «a pressa, a distração, que são mais característicos da comunicação imediata (tanto na oralidade como na escrita – se pensarmos nas redes sociais)».
E, claro, erramos porque não sabemos como se escreve corretamente. Damos erros por puro desconhecimento. «Mas também erramos por preguiça: quando não queremos ter o trabalho de ir investigar, para resolver uma dúvida e quando usamos uma palavra estrangeira em vez de empregarmos o termo vernáculo correspondente. Há um grande abuso de estrangeirismos que revela essa preguiça, sobretudo daqueles que servem para tudo. Como top. Agora tudo é top!», exemplifica Sara de Almeida Leite.
"Concerteza" e "fizes-te"
Há erros que são mais comuns na escrita e outros mais comuns na oralidade. Por exemplo, é comum escrevermos "concerteza", como se fosse uma só palavra, quando a forma correta é «com certeza». Ainda na escrita, é muito comum colocarmos o chamado "tracinho" onde ele não deve estar: e escrevemos "fizes-te" (em vez de fizeste), "escreves-te" (em vez de escreveste) ou "contas-te" (quando o correto é contaste). «O mesmo se aplica a formas verbais terminadas em -mos e em -sse, como irmos [que aparece muitas vezes escrito "ir-mos"] e abrisse [que muita gente escreve "abri-se"]», acrescenta a escritora.
É também comum ouvirmos palavras ditas de uma forma que ferem os ouvidos dos mais puristas: "rúbrica" em vez de rubrica (seja qual for o sentido da palavra – uma parte de um programa de televisão ou uma assinatura é sempre rubrica, sem acentuação na primeira sílaba); "lêiamos", "fáçamos" e "póssamos" em vez de leiamos, façamos e possamos.
Os erros mais frequentes
Sandra Duarte Tavares coloca numa lista os sete erros de português com que se depara mais vezes, seja na oralidade, seja na escrita. Além de nos ensinar a forma correta, adianta também uma explicação que talvez nos ajude a nunca mais esquecer como se diz ou se escrevem estas palavras.
ERRO 1: «Um dia de sol é um dia solarengo».
Forma correta: soalheiro
O adjetivo soalheiro significa «quente, exposto ao sol». O adjetivo solarengo significa «relativo ou pertencente a solar (casa nobre, de arquitetura requintada)».
ERRO 2: O verbo despoletar como sinónimo de desencadear.
Forma correta: espoletar, desencadear
O verbo despoletar, ao contrário do que pensamos, não significa «deflagrar, desencadear». E porquê? Na sua base está a palavra espoleta, que é um termo militar que designa o dispositivo que produz a detonação das cargas explosivas, como por exemplo uma granada. Quando ativamos esse dispositivo, usamos o verbo espoletar, que significa «pôr a espoleta em», logo, «fazer deflagrar a granada». Se tirarmos a espoleta, a granada fica inativa. Para esta ação, usamos o verbo despoletar, que significa, portanto, «tirar a espoleta a; tornar impossível o disparo de». Em sentido figurado, significa «anular algo, travar o desencadeamento de».
Ora, quando dizemos, por exemplo, «Foi isso que despoletou a incêndio», estamos a dizer precisamente o oposto do que pretendemos. Porque não usar o verbo desencadear?
ERRO 3: à muito tempo, à uma semana
Forma correta: há muito tempo, há uma semana
A forma verbal há (verbo haver) pode assumir um valor temporal, podendo ser substituída pela forma verbal faz: «faz muito tempo», «faz uma semana». Tem um valor durativo no passado.
ERRO 4: «As pessoas foram evacuadas do auditório».
Forma correta: retiradas
O verbo evacuar, enquanto transitivo, significa «desocupar um determinado espaço; esvaziar». Assim, evacuam-se lugares e não pessoas.
ERRO 5: ac[ó]rdos
Pronúncia correta: ac[ô]rdos
Esta palavra é formada a partir do verbo acordar, cuja vogal o se pronuncia [u]. Quando se formou a palavra acordo, o som da vogal o passou a [ô], pelo facto de a vogal passar a pertencer à sílaba tónica. No plural, a vogal mantém-se fechada: ac[ô]rdos.
ERRO 6: mau-estar
Forma correta: mal-estar
A palavra composta mal-estar é formada pelo advérbio mal e pelo nome estar. O seu antónimo é bem-estar (e não "bom-estar").
ERRO 7: alcool[é]mia
Pronúncia correta: alcoolemia
Esta palavra pronuncia-se com e fechado e escreve-se sem qualquer acento gráfico. Na sua formação entra o elemento -emia (radical grego) que exprime a ideia de sangue e entra na formação de palavras como anemia, leucemia, glicemia.
«Há dois anos atrás», «[tenho] um amigo meu» e outros erros
Sara de Almeida Leite acrescenta mais alguns erros.
«Um dos mais comuns é sem dúvida o da redundância, o chamado pleonasmo. Por exemplo: "há dois anos atrás". Quando se usa o verbo haver no sentido temporal, a preposição atrás não faz falta, é redundante. Só devemos usar atrás, nesse tipo de frase, quando não empregamos o verbo: «dois anos atrás» está correto. É o mesmo tipo de erro das expressões "ter opção de escolha" [forma correta: «ter opção»], "ser um elo de ligação" [se é um elo, já é de ligação…] e "tenho um amigo meu" [se tem um amigo, já é seu…]».
Há também quem diga «ter morto», «ter aceite» ou «ter empregue», em vez de «ter matado», «ter aceitado» e «ter empregado». «Nestes casos, muitos falantes estão convencidos de que as formas corretas estão erradas, portanto, aplica-se um fenómeno a que os linguistas chamam de "hipercorreção". Há muitas ocasiões em que as pessoas cometem erros, mas estão convencidas de que estão a falar ou a escrever bem. Quando dizem e escrevem, por exemplo, "Devemos ser o mais claros possíveis" [forma correta: «devemos ser o mais claros possível»], ou "essas são as coisas que são mais importantes fazer" [forma correta: «Essas são as coisas que é mais importante fazer»]», explica Sara de Almeida Leite.
Estratégias para acabar com eles
Acabar com os erros ortográficos talvez seja uma utopia. Mas podemos adotar estratégias para os diminuir. Isso passa, como reforça Sandra Duarte Tavares, por criar hábitos de leitura saudáveis, perder a preguiça e consultar regularmente dicionários e prontuários ou imprimir menos imediatismo à comunicação e rever atentamente o que escrevemos antes de publicar, por exemplo, nas redes sociais ou enviar a alguém.
Mas o segredo para dar menos erros começa ainda mais cedo. Sandra Duarte Tavares considera que é preciso dar «mais foco aos conteúdos de linguística e comunicação nos Ensinos Básico e Secundário», mas também apostar na «formação contínua nas empresas, com o objetivo de se desenvolver competências de comunicação oral e escrita».
E a humildade, senhores? Cultivemos a humildade. «É sempre bom ter dúvidas (e dar o benefício da dúvida aos outros, mesmo quando achamos que estamos certos) e ir investigar, para saber qual é, realmente, a forma mais correta e porquê», destaca Sara de Almeida Leite.
Se formos falar em público, preparemos o nosso discurso com antecedência. O improviso pode ser um grande inimigo da correção linguística.
1 N. E. – Deve haver lapso, porque «dava-lhe mais jeito» é forma correta. O que não é correto é dizer ou escrever "daria-lhe"; a forma correta é dar-lhe-ia.
Cf. ‘À muito tempo que não te via’, ‘hades’ cá vir. Estamos a dar mais erros de português?
Texto assinado pela jornalista Manuela Micael, transcrito, com a devida vénia, do sítio eletrónico da CNN Portugal, com a data de 9 de julho de 2023.