No espaço de cinco meses o provedor do “Público” recebeu 886 mensagens electrónicas e oito cartas. Os leitores denunciam (cada vez mais) gralhas e erros de português. E algumas expressões controversas…
«Não é admissível que, nos dias que correm, se dêem erros de português num jornal como o “Público”. Isto a respeito da última página (18 de Maio). O título da notícia é: “Roubar quatro queijos de vaca é desadequado para matar a fome”. Em primeiro parece-me que não foi um roubo mas um furto. Mas isto não é matéria assim tão polémica... Agora, a não ser que os juízes do Tribunal da Relação do Porto estejam a precisar de um corrector ortográfico, não percebo como aparece escrito, no penúltimo parágrafo, ‘persumir’ [sic.] quando, obviamente, deveria estar escrito ‘presumir’ do Lat. praesumere que significa: conjecturar; julgar com certas probabilidades; supor; prever; entender; Sendo que há, pelo menos, um bom dicionário de português para PC e computadores APPLE não se compreende...», escreve Jorge Laranjo.
“Desadequado” não é português. “Roubar” implica furtar com violência. A formulação correcta seria, portanto, «furtar quatro queijos de vaca é inadequado para…» “Persumir” só pode ser uma gralha.
«Há dias, na primeira página do "Público", podia ler-se‘desadequado’. O correcto é não adequado ou inadequado. Ainda sobre o mesmo assunto, a sentença da Sr.ª Juíza que determina que é inadequado proibir o livro onde o autor põe a nu as constantes repetições da Sr.ª Margarida Rebelo nos livros que escreve (sentença com a qual estou completamente de acordo), o “Público” repete o erro e escreve 'desadequado'. Mesmo que tenha sido erro da Sr.ª Juíza, o jornal devia emendar e escrever correctamente. Os jornais e mais concretamente o “Público”, jornal de referência que leio e compro desde o seu aparecimento, deve ter cuidado com isto, pois ainda que eu acredite que com o rolar dos anos Portugal poderá vir a transformar-se numa Comunidade da Ibéria, devemos pelo menos, e a exemplo dos catalães, conservar a nossa língua», escreve Manuel Salgueiro Quartel, um leitor de Cascais.
Não adequado, inadequado, impróprio, inconveniente, inoportuno ou malpropício são alternativas correctas.
«A propósito do artigo ‘Tribunal autoriza adopção contra vontade dos pais’ (17 de Maio). Tânia Laranjo (“Público”) escreve a seguinte frase: ‘Apesar de a lei apenas prever a incapacidade dos pais por doença mental, o espectro normativo, numa interpretação teológica, abrange outras situações similares, como a toxicodependência e o alcoolismo’. Não me é claro o sentido da palavra teológica (interpretação à luz de Deus???) neste contexto. Foi mesmo esta a expressão dos Juízes, ou antes ‘teleológica’ (em função do fim a que se destina)?», pergunta José Lopes.
O leitor tem razão. A expressão mais plausível parece ser “teleológica” e não “teológica”, mas Tânia Laranjo limitou-se a reproduzir palavras alheias. A jornalista podia ter emendado a citação? Podia, mas para isso precisava de detectar o erro e dispor de mais tempo para poder contactar a(s) fonte(s). A teleologia é a «ciência que explica os seres pelo fim a que parecem ser destinados» (in Dicionário de Português, 4.ª Edição, Porto Editora).
«Ainda sobre as pertinentes observações referidas no “Público” (crónica do provedor) de 7 de Maio passado, sob o título ‘Mudam-se os tempos’, e relativas aos muitos erros ortográficos que vão surgindo em muitos textos do jornal, julgo que nem tudo se deve aos programas informáticos de correcção, ou à inexperiência dos estagiários… nem são apenas um sinal dos tempos. Embora concorde em parte com as justificações de José Manuel Fernandes, não posso deixar de lamentar que, na própria resposta desse Director, a meio do seu texto, tenha indicado ‘E se caminhar-nos’ quando deveria ter escrito ‘E se caminharmos’, não é assim? Já agora: Porque razões continuam a surgir quase diariamente dobras nas páginas do “Público” que impossibilitam a sua leitura corrida, sendo necessário esticar as folhas para que os textos sejam perceptíveis?», indaga Albano Nogueira Guedes, um leitor de Guimarães.
O comentário do leitor é pertinente. A questão das arreliadoras dobras já foi abordada numa crónica do provedor. O director respondeu que o problema deverá ser solucionado num futuro próximo.
«Deputado-........ (escolha a profissão) Leio no ”Público”, de 13 de Maio, na coluna ‘ Sobe e desce’ (sempre fascinante): ‘Manuel Maria Carrilho (…) O deputado-filósofo’. Parece-me curiosa, no mínimo, a designação de ‘deputado-filósofo’ quando os jornalistas se referem a Manuel Maria Carrilho. Será que os jornalistas em causa, quando se referirem a outros deputados, dirão: o deputado-operário, o deputado-advogado; o deputado-engenheiro; o deputado-jornalista; o deputado-actor.....??? Já agora: o hífen é para quê? Qual é o adjectivo: deputado ou filósofo?, pergunta António Monteiro Pais.
”Sobe e desce” é uma coluna de opinião. E o provedor não pode pronunciar-se sobre opinião. Os jornalistas promovem valores e linguagem. E no jornalismo há regras que convém respeitar (designadamente a nível da língua). Optar por uma dupla designação numa notícia parece-me duplamente discutível. Também não entendo a razão do hífen, qual é o adjectivo. Como explicar o facto de essa regra não ser aplicada aos outros deputados, aos operários, advogados, engenheiros, jornalistas, actores, etc.?
«Seria possível perguntar ao sr. Ricardo Garcia o que são os ‘gases climáticos’ referidos no seu artigo ‘Emissões de gases climáticos em Portugal aumentaram 41 por cento desde 1990’? Seria possível contratar jornalistas que escrevam com um mínimo de rigor e competência?», sugere o leitor A. Dias.
Solicitei um esclarecimento ao jornalista.
«”Gases climáticos” é uma expressão figurada, que em algumas circunstâncias utilizo no lugar de “gases com efeito de estufa” – apontados como responsáveis pelo aquecimento global. É um recurso de linguagem. Às vezes também escrevo ‘gases que alteram o clima’. Quanto a contratar jornalistas competentes, sempre fui a favor», respondeu Ricardo Garcia.
”Gases climáticos” corresponderá à expressão anglo-saxónica “climate gas”. O jornalismo não é uma ciência exacta, mas (à semelhança da tragédia clássica) tem algumas regras. E a primeira é o rigor. O provedor considera que os jornalistas deviam evitar ornar os seus artigos com expressões e palavrões exóticos (muitas vezes incompreensíveis, sem contar com os inevitáveis pleonasmos), mesmo traduzidos. A língua de Eça é suficientemente rica para permitir a afirmação da inteligência e da cultura dos jornalistas…
texto saído na coluna “Provedor do Leitor”, do jornal português “Público” de 4 de Junho de 2006, com o título original.