A pronúncia, uma discriminação mais marcante do que a cor da pele - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A pronúncia, uma discriminação mais marcante do que a cor da pele
A pronúncia, uma discriminação
mais marcante do que a cor da pele
Os estudos da neurociência e uma história bíblica

« (...) Uma criança com cor de pele diferente mas o mesmo sotaque e uma criança com a mesma cor de pele mas que fala com sotaque, a maioria das crianças prefere ter a primeira como amiga. (...)»

 

A pronúncia é uma forma de discriminação mais marcante do que a cor da pele. Por muito surpreendente que pareça, esta asserção já foi demonstrada pela neurociência.

Com efeito, os neurocientistas chegaram recentemente a duas conclusões bastante surpreendentes. Uma: os adultos preferem pessoas que falam com o mesmo sotaque que eles. Outra: este critério tem um papel mais importante do que a cor da pele! É o que demonstra, nomeadamente, o neuropsicólogo e linguista Albert Costa, num livro intitulado The Bilingual Brain, baseado em vários estudos realizados em todo o mundo.

Este comportamento tem uma explicação. Durante muito tempo, lembra o cientista, o Homo sapiens teve poucas oportunidades para encontrar um ser humano com uma cor de pele diferente da sua. O modo de falar desempenhou, portanto, um papel essencial para que ele pudesse saber como se comportar diante dos seus interlocutores. E… ainda procedemos da mesma maneira. De facto, podemos obter muitas informações sobre uma pessoa durante uma simples conversa, como sejam a região de origem, o nível cultural, a categoria social, etc., o que, aliás, se verifica desde cedo, como mostra uma série de experiências incríveis.

Por meio da utilização de vídeos, pediu-se a crianças de cinco anos de idade, falantes de inglês, que dissessem quem gostariam de ter como amigo. No primeiro filme, uma criança fala inglês; no segundo, outra fala russo. Resultado? Vantagem para quem usa o inglês, o que parece lógico já que os jovens falantes de inglês o percebem perfeitamente.

Repetiu-se, então, a experiência com outro critério. Desta vez, é a cor da pele que varia. Resultado semelhante: sem surpresa, as crianças dão grande preferência àqueles com quem se identificam.

Terceira variável: pronúncia. Aqui, novamente, as crianças nativas de língua inglesa preferem ter como amigas crianças que falam com o mesmo sotaque que elas, em vez das que usam um inglês perfeitamente compreensível, mas com entoação russa.

No entanto, ainda está para vir uma surpresa. Entre uma criança com cor de pele diferente mas o mesmo sotaque e uma criança com a mesma cor de pele mas que fala com sotaque, a maioria das crianças prefere ter a primeira como amiga!

Tudo isso lembra talvez um episódio (relativamente) famoso da Bíblia: o xibolete, do hebraico shibbōleth. No Livro dos Juízes, (12, 4-6) o povo de Guilead usa este termo, que significa «espiga» ou «ramo» em hebraico, para identificar os seus inimigos de Efraim, que tentam escapar deles. Eis o trecho: «[…] sempre que um fugitivo de Efraim dizia: 'Deixai-me passar', respondiam-lhe os homens de Guilead: 'Tu és de Efraim” Ele retorquia: “Não sou, não!” Então, diziam-lhe: “Pois então diz ‘xibolete’,”; ele, porém, dizia: ‘sibolete’, porque não era capaz de pronunciar corretamente. Então prendiam-no e degolavam-no junto aos vaus do Jordão. Nesse dia, morreram quarenta e dois mil homens de Efraim.» É por isso que, em linguística, xibolete significa uma frase ou uma palavra que revela a pertença de uma pessoa a um grupo.

Os judeus e cristãos não devem ser os únicos a conhecer esta noção porque, na realidade, todos nos preocupamos com a existência destes sinais de reconhecimento verbal. Imaginemos, por exemplo, que, durante um simpósio internacional, um francês fala inglês com sotaque francês. Pois bem, as neurociências confirmam que os ouvintes se lembrarão menos das suas palavras e as acharão menos confiáveis do que uma mensagem idêntica transmitida por um falante nativo de inglês! «Se alguém pedir que se avalie a veracidade da  afirmação "As formigas não dormem", a resposta depende do sotaque com que é pronunciada. Julgamos a afirmação com a nossa pronúncia mais plausível  do que a proferida com sotaque estrangeiro" , escreve Albert Costa, que conclui: «Estes resultados, entre outros, mostram até que ponto a língua é um poderoso fator de discriminação social.» Eles conferem, portanto, uma vantagem considerável aos falantes anglo-saxónicos, o que, a menos que se cultive certa propensão para o masoquismo, deveria dissuadir os organizadores franceses de escolher o inglês como língua de comunicação durante os eventos realizados em França.

Estes preconceitos também explicam – sem justificá-los – o desprezo a que, na França, são submetidas as pessoas que falam com pronúncia e entoação regionais. Nas apresentações coletivas, de facto, a pronúncia padrão continua a evocar competência e seriedade, enquanto sons do Berry ou dos Vosges são associados à falta de cultura e à ruralidade. E não pensem que as classes trabalhadoras são as únicas afetadas por esse fenómeno. O filósofo Michel Serres, de Agen (na Aquitânia, no sudoeste da França), declarou ao L'Express: «Esperei 60 anos para ser levado a sério. Antes, eu fazia as pessoas rirem.»

É também é o que Clément Viktorovitch explica no seu best-seller, The Power of Rhetoric: «O nosso cérebro opera de modo intuitivo», escreve. «Em vez de se entregar a raciocínios custosos, vai por atalhos, que simplificam o pensamento.» Ora, o sotaque é um dos mais poderosos atalhos, conforme a "demonstração" seguinte: «Não é possível falar a sério com sotaque regional.»

Os poderes públicos – e fazem muito bem – procuram lutar atualmente contra os estereótipos sofridos pelas pessoas negras na França. Para quando uma grande campanha contra os estereótipos ligados às pronúncias regionais?

Fonte

Artigo jornalista francês Michel Feltin-Palas publicado em francês no semanário L'Express, em 24 de janeiro de 2023,  traduzido com adaptações.

Sobre o autor

Chefe de Redação  da revista francesa L'Express, conferencista e autor entre outros livros de Le Roman de Chirac.