« (...) O valor da qualidade de alguém é algo subjetivo demais para que um único dicionário assuma a autoridade para decidir quem é o melhor. (...)»
A palavra do momento é pelé recentemente incorporada ao léxico do dicionário Michaelis. Muitos gostaram e até comemoraram a nova unidade léxica do dicionário, mas alguns gramáticos já torceram o nariz e identificaram incongruências. Teve quem não concordasse com a “homenagem”. Eu vou além: o problema não está na palavra ou em Pelé, mas na forma como a ação foi feita; acredito que esse seja um bom motivo para nos preocuparmos quanto ao mau uso que os dicionários podem fazer de seu poder influenciador.
Vamos à análise.
O amigo Fernando Pestana, autor de livros de Gramática e colunista desta página [Língua e Tradição], entende que não há motivo para pelé ter sido apresentado como adjetivo. Alguém consegue imaginar uma frase já usada por aí em que pelé tivesse funcionado como adjetivo? «Essa nadadora é pelé; um cozinheiro pelé.» Seria isso? Esquisito... Alguém fala assim?
Usar Pelé como uma metáfora para «extraordinário; de alta qualidade» é algo comum. O analgésico Mirador, por exemplo, já usou o slogan «Mirador, o Pelé dos comprimidos» numa comercial de 2009. Chico Buarque e Roberto Carlos já foram chamados de «Pelé da Música»; Jorge Amado, o «Pelé da Literatura»; Washington Olivetto, o Pelé da Propaganda.
Até dentro do futebol a comparação rolou solta. Zico já foi chamado de «Pelé branco» pela mídia internacional. Leônidas era o «Pelé dos anos 30». O jogador português Eusébio não gostava que os jornais o tratassem por «o Pelé da Europa»; ele retrucava: «Por que não dizem que Pelé é o Eusébio do Brasil?»
Até aqui, os casos apresentados não passam de metáforas – a designação da qualidade de um objetivo pela comparação implícita a outro objeto, mais conhecido. Para tanto, então, Pelé precisa ter inicial maiúscula. Para ficar com minúscula, o processo linguístico é outro.
A passagem de um substantivo próprio (inicial maiúscula) a substantivo comum (inicial minúscula) é conhecida pelos gramáticos como «derivação imprópria». É o que aconteceu, por exemplo, com a marca Gillete que se transformou em gilete, como sinônimo de «lâmina de barbear descartável»; Cotonete → cotonete; Xerox → xerox; Judas → judas; Caxias → caxias.
Isso bem poderia ter acontecido a Pelé. A grande dúvida sobre esse ocorrido está num dos quesitos mais importantes para que uma palavra apareça num dicionário (critério de lexicalização): a frequência do uso pelos falantes. Palavras e expressões pouco empregadas (por serem obsoletas ou neologismos recentes ou limitadas a um pequeno grupo de pessoas) não costumam figurar o léxico dos dicionários.
Então, surge-nos a questão: o quão frequente foi pelé (com inicial minúscula) nos textos em português para que participasse do léxico dum dicionário? Numa rápida pesquisa no Google, não encontrei pelé (no sentido de «excepcional, incomparável») em nenhum resultado com a sequência «o pelé da/do». Apenas com inicial maiúscula, o que denota a metáfora, não a derivação imprópria. Com «a pelé da/do», no feminino, nem metáfora.
A falta de familiaridade com a palavra pelé fez com que alguns cogitassem: um dicionário pode emplacar uma palavra pouco usada? Um dicionário pode «prestar homenagem» lexicalizando um novo termo?
Segundo o jornal Folha de S. Paulo, houve uma campanha iniciada pela Pelé Foundation que conseguiu um abaixo-assinado com 125 mil assinaturas. A agência End to End desenvolveu a campanha e o chefe de márquetim Bruno Brum comemorou: «Perceber um jargão que já estava no cotidiano das pessoas e através da oficialização dele prestar essa homenagem é uma celebração incrível.»
Não mesmo. Primeiro, o termo pelé, como substantivo comum (portanto, com inicial minúscula) nunca esteve no cotidiano brasileiro. Segundo, quem oficializa palavras em nossa língua, em tese, é o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) publicado pela Academia Brasileira de Letras. O verbete pelé não consta em nenhum outro dicionário além do Michaelis.
Minha preocupação aqui, meus amigos, se dá pela arbitrariedade do referido dicionário em incluir uma palavra em sua composição lexical baseada numa campanha e/ou num abaixo-assinado, desconsiderando a frequência do uso do terno pela população. Se for assim, qualquer figura pública pode contar com um fã-clube que pressione algum dicionário a incluir o nome do ídolo como «nova palavra». Se isso for para área da Política, nem quero imaginar as consequências.
No mais, quem tem o poder de atribuir a Pelé como «o maior atleta de todos os tempos»?! «O maior atleta»? Ganhando de todos os atletas de todos os esportes de todo o mundo? Eu, por exemplo, sou bem mais o Ayrton Senna, do Automobilismo, e o Oscar Schmidt, do basquete. Cristiano Ronaldo e Messi fizeram bem mais gols que Pelé em jogos oficiais. Outros jogadores foram igualmente importantes.
Melhor considerando as categorias masculino e feminino? Em Copas do Mundo, Marta fez mais gols que Pelé.
O valor da qualidade de alguém é algo subjetivo demais para que um único dicionário assuma a autoridade para decidir quem é o melhor. Eu reconheço que Pelé foi um ícone brasileiro, um esportista ímpar, mas até para ele há de se ter ponderação. No mais, espero que a lexicalização de pelé no Michaelis não funcione como precedente para outros personagens públicos; que os dicionários prossigam como «espelhos da sociedade» sem ceder a pressões públicas ou à vaidade dos holofotes.
Artigo de opinião publicado no mural Língua e Tradição (Facebook, 29 de abril de 2023).