«(...) querer que cada país da lusofonia tenha o seu próprio sistema ortográfico [...] é fechar os olhos à realidade da língua portuguesa partilhada hoje por oito países. (...)»
[declarações do gramático e académico brasileiro Evanildo Bechara no programa Língua de Todos do dia 24/02 p.p.]
– O que acha das alterações ao Acordo Ortográfico, propostas pela Academia das Ciências de Lisboa?
Evanildo Bechara – Não tem sentido a Academia das Ciências de Lisboa fazer uma revisão isoladamente de um tratado que foi assinado entre os oito países de língua oficial portuguesa. Acho que pelo menos o presidente da Academia está fora de rumo nessa campanha.
– E como encara esta iniciativa do presidente da Academia portuguesa?
Evanildo Bechara – Sinceramente, nem sei. Não tenho proximidade nem contacto regular para encará-la senão de uma forma. Trata-se de uma pessoa que não é do ramo, que pode ter até a melhor boa vontade, mas que parte de um princípio errado de querer que cada país da lusofonia tenha o seu próprio sistema ortográfico. Isso é fechar os olhos à realidade da língua portuguesa partilhada hoje por oito países e usada por esses países como língua de comunicação. Ele não sabe que uma língua não se define pelas suas variedades, mas pela sua unidade. As línguas permitem que os vários usuários dela tenham diversidade, mas quando falam essa língua, ou quando a escrevem, como é o caso do nosso idioma comum, a língua que identificam é a língua portuguesa. É a língua portuguesa – não é francês, nem inglês, nem alemão...
– Considera então uma falta de cortesia da Academia das Ciências de Lisboa para com a Academia Brasileira de Letras e demais para com os outros países?
Evanildo Bechara – Não diria falta de cortesia, mas uma falta de atenção... É olhar o próprio umbigo e pensar que anda sozinho no mundo. Numa língua que sempre foi uma língua muito difundida, e que hoje é das línguas mais faladas no mundo, não se percebe esta posição. Só de alguém que não é um especialista do assunto... E quando essa pessoa não é especialista de um assunto e quer resolver os assuntos relativos a essa matéria, não se sai bem, não é?
– E qual é a situação da aplicação do Acordo Ortográfico no Brasil?
Evanildo Bechara – Tranquilo!... Todo o mundo usa... Obviamente que a mudança de hábito não agrada muita gente. Qualquer que seja esse hábito – por exemplo, a mudança de uma parada de um ónibus, de um autocarro, a mudança da hora da refeição num internato, etc. – é uma mudança que não agrada a todos. Mas, com toda a certeza, se for feita por uma pessoa inteligente e do ramo, ela tem uma razão de ser.
– Concretamente, a sua adoção na vida dos brasileiros, como se está?
Evanildo Bechara – Completamente, tanto no sistema público como nas escola, assim como nos jornais. No Brasil não há notícia de um órgão de divulgação importante, como há em Portugal o Público, insistindo em não seguir o Acordo. Nós não temos isso aqui. E olhe que o Brasil poderia reclamar de muita coisa desse Acordo, porque ele teve de ceder nos seus hábitos ortográficos muito mais que os portugueses. Se você comparar o a reforma ortográfica de 1945 e o sistema brasileiro usado desde 1943 nós vamos ver que nós, brasileiros, tivemos de fazer cedências em muito maior número de casos. Mas, mesmo assim, o Governo brasileiro e os especialistas, principalmente os dois representantes da Academia Brasileira de Letras, sentiram que era um problema que não deveria afetar diretamente este ou aquele país, mas que deveria ser resolvido em prol da difusão da língua portuguesa no mundo.
– Isso significa que no Brasil não houve grande resistência ao Acordo?
Evanildo Bechara – É claro que há vozes discordantes, mas não em número de completar um abaixo-assinado, como há em Portugal. De modo que nós lamentamos que o presidente da Academia das Ciências de Lisboa tenha saído dos trilhos, da área onde ele é uma autoridade competente, para falar e tentar resolver problemas de áreas que estão muito afastadas da sua competência profissional.
– E os "trilhos", quais são eles?...
Naturalmente, os do Instituto Internacional de Língua Portuguesa que está trabalhando com uma equipe muito bem preparada e representando todos os países da CPLP – [no estrito âmbito do qual] cabe melhorar o que consensualmente se entenda no texto do Acordo. Mas uma alteração unilateral, como quer o presidente da Academia portuguesa, que reclama para o seu país um sistema ortográfico próprio, isso é voltar a antes de 1911. Seria um retrocesso de mais de 100 anos na história de ortografia portuguesa.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico
depoimento prestado ao programa Língua de Todos do dia 24/02/2017.