« (...) Aqui vai uma bela lista, resumida, das “magníficas” invenções que têm povoado a escrita portuguesa nestes [últimos catorze] anos e que, por muitos erros que antes houvesse (como sempre houve e há), só podem ter sido induzidas pelo AO90 (...).»
Voltámos à “recepção”? Mas afinal que país é este, hã?
Extraordinário. Se não víssemos não acreditávamos. Então não é que a RTP, decerto atrapalhada com a cobertura da Jornada Mundial da Juventude, anunciou uma «recepção oficial ao Papa na base aérea»? Uma recepção, leram bem? Incrível. Só pode ter sido influência brasileira, com certeza. Num país há tantos anos amodorrado em branda “receção”, multiplicando “receções” a torto e a direito, vêm agora estragar esse belo cenário com uma palavra de consoante proibida. É obra. Só faltava que nos viessem falar no “aspecto” das celebrações, com franqueza. “Aspeto” é que é. E em “espectadores”, só para nos fazer esquecer os nossos tão queridos “espetadores”. Se fosse na TV Globo, percebia-se: recepção, aspecto, espectadores[1]. Agora cá? Brasileirices!
Ironias à parte, é de facto extraordinário como de vez em quando, nos órgãos de comunicação social portugueses, há palavras bem escritas no meio da traficância quase extraterrestre que nos vem contaminando a expressão gráfica (e, já agora, em certas palavras também a fala) desde há uns catorze anos a esta parte, a pretexto do chamado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Se é verdade que no Brasil as palavras recepção, aspecto e espectadores se mantiveram como eram em Portugal até esse momento, passaram aqui (e em mais lado nenhum) a escrever-se nas originalíssimas formas “receção”, “aspeto” e “espetadores” (esta como variante, sim, mas permitindo que muita gente passe a “espetar” em vez de simplesmente assistir, ou espectar).
Isto, que parece não incomodar, no geral, governantes, professores ou jornalistas, com honrosas e conhecidas excepções, tem gerado um cortejo imparável de disparates que o dito acordo não acata nem recomenda, embora por analogia acabe por alimentar. A lógica é: se vemos duas consoantes juntas, corta-se uma. Ou até se trocam letras. Aqui vai uma bela lista, resumida, das “magníficas” invenções que têm povoado a escrita portuguesa nestes anos e que, por muitos erros que antes houvesse (como sempre houve e há), só podem ter sido induzidas pelo AO90:
Abruto (abrupto), adatação (adaptação), adeto (adepto), adito (adicto), apocalise (apocalipse), autótone (autóctone), batéria (bactéria), compato (compacto), conveção (convecção), convito (convicto), corrução (corrupção; há também “corrutos”), critomoeda (criptomoeda), diaframa (diafragma), egício (egípcio), erução (erupção), espetável (expectável), espetativa (expectativa), etoplasma (ectoplasma), eucalito (eucalipto), evição (evicção), excessão (excepção), excepo (excepto), fitício (fictício), frição (fricção), galático (um galáctico dos galos, certamente), impato (impacto), hetágono (heptágono), inato (inapto, como quem tal escreveu), inteletual (intelectual), interrução (interrupção), manética (magnética), nétar (néctar), oção (opção), ocional (opcional), ocipital (occipital), ojetivo (objectivo), otogonal (octogonal), pato (pacto), piroténico (pirotécnico), pitograma (pictograma), protologia (proctologia), proveta (provecta), réteis (répteis), surfatante (surfactante), tenológico (tecnológico)[2]. Há muitas, muitas mais.
Até Vital Moreira, um reconhecido defensor do AO90, veio a público insurgir-se contra o uso de “adição” (soma) em vez de adicção (dependência de drogas, etc.), já que, explica ele no blogue Causa Nossa, se escreve “adicto” e “adictivo”. Escreve? Por este caminho, será mesmo “adito” e “aditivo”, ainda que Vital esperneie. Foi no que deu, dá e dará a sua bela «nova ortografia». Veja-se, por exemplo, esta linda palavra: “ficionista”. É, decerto, uma nova categoria de escritor que passou a existir. E só pode escrever "fição", que com jeitinho científico ainda passará a fissão, aproximando-se perigosamente do nuclear. Esta espécie já teve direito de antena na RTP, por duas vezes, e até, pasme-se!, na Imprensa Nacional (o “ficionista”, coitado, é Jorge de Sena).
Eu sei, o tema cansa. Ora o que dirão aqueles que, assistindo a este miserável cortejo de disparates, se vêem impotentes para o travar, apesar das mil e uma tentativas já feitas? O que será preciso para que quem pode, e manda, olhe para isto com um mínimo de atenção? As propostas de alteração feitas outrora pela Academia das Ciências de Lisboa (amortalhadas na gaveta), bem como as sugestões dadas por um defensor do AO90 como D’Silvas Filho, num conciliador Vocabulário Ortográfico de sua autoria editado pela Guerra & Paz em 2020, ainda que não resolvessem o essencial (este acordo é, de raiz, um erro clamoroso), pelo menos podiam reduzir este avolumar inquietante dos erros. Tristemente, porém, é o inverso que se passa.
[1] N. E. – Sobre recepção, aspecto, espectadores, recorde-se que, em Portugal, no contexto da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), se recomendam as formas receção, aspeto e espetador (esta com e aberto na sílaba -pe-). Ver Vocabulário Comum da Língua Portuguesa (Instituto da Língua Portuguesa da CPLP), Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa (Porto Editora) e Dicionário da Língua Portuguesa (Academia das Ciências de Lisboa).
[2] N. E. – Sobre a lista de palavras apresentada, esclareça-se que em Portugal, em consequência da aplicação do AO 90, são casos de facultatividade, isto é, casos de dupla grafia: expectável/expetável e expectativa/expetativa (ver fontes indicadas na nota 1).
Artigo de opinião do jornalista português Nuno Pacheco incluído no jornal Público em 31 de agosto de 2023. As imagens são as que acompanham o texto original. Mantém-se a norma ortográfica de 1945, seguida pelo autor.