«(...) Não estamos a falar do léxico, da semântica ou significado das palavras, nem da morfossintaxe (construção das frases), mas sim e apenas da ortografia. (...)»
A nossa vida é feita de mudanças, tal como a sociedade, e o mesmo acontece com a Língua enquanto realidade social, porque é uma entidade viva. A mudança e a variação são, assim, inerentes à própria língua, que é heterogénea e não homogénea. Por isso, existe uma norma padrão, a língua falada na capital, onde está o poder político, económico e social do país, e variedades regionais e sociais genuínas e legítimas que a enriquecem e, muitas vezes, guardam formas mais antigas da língua, que desapareceram da norma.
Deste modo, a Língua Portuguesa, como qualquer língua viva, evolui com o tempo, ao longo dos séculos. Portanto, a língua que falamos e escrevemos hoje não é igual à dos séculos passados. Se assim fosse e se a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa não tivesse ocorrido em 1911, após a implantação da República Portuguesa (em 1910), ainda escreveríamos assumpto em vez de assunto, characteristica em vez de característica e pharmacia em vez de farmácia. Ou seja, embora a ortografia seja conservadora, houve necessidade de aproximá-la da fala, sem comprometer muito a sua origem etimológica do Latim, para que não existisse um fosso muito grande entre estas duas realidades.
Estive para escrever sobre o novo Acordo Ortográfico já há alguns anos, mas nunca o fiz porque pensei que o tempo se encarregaria de promover o seu acolhimento na sociedade portuguesa. Contudo, confrontada novamente, em mais um ano letivo, com o desconhecimento dos alunos e, consequentemente, o seu desconforto em usar a ortografia pós-Acordo, estando contra esta, por vezes, porque dizem «abrasileirar a língua portuguesa», expliquei-lhes as mudanças e o seu porquê e eles próprios incentivaram-me a escrever e a publicar este texto.
Sempre houve e continua a haver muita informação contraditória e mesmo contrainformação sobre o Acordo Ortográfico. Logo, no início, antes da sua entrada em vigor, já existia na internet um abaixo-assinado contra ele, que dizia que um grupo de empresários tinha feito um almoço de negócios, tinham comido «pato» e, no final do almoço, assinaram um «pato, querendo dizer que estas duas palavras passariam a ser escritas da mesma forma, o que não é verdade. Pacto, tal como facto, continua a escrever-se com c porque esta consoante é pronunciada e continuará a sê-lo, tendo uma função distintiva respetivamente com pato e fato.
O Português do Brasil, ao contrário do que se possa pensar, é mais conservador do que o Português Europeu, em muitos aspetos, tanto na fala como na ortografia, por exemplo ainda escrevem Luiza com z em vez de s. Muitas das diferenças entre as duas normas escritas destes dois países de língua portuguesa devem-se ao facto de a reforma ortográfica de 1911 não ter incluído o Brasil, uma vez que este já era um país independente. Por isso, posteriormente, houve a necessidade da existência de acordos ortográficos entre os dois países, que já aconteceram antes e o de 1990 é o último, daí ser chamado novo Acordo Ortográfico. Acordo Ortográfico porque se trata apenas de uma questão de uniformização da ortografia da Língua Portuguesa a nível internacional, o que é muito importante sobretudo para o ensino do Português como Língua Não Materna no mundo e para que a língua portuguesa possa ser usada como língua de trabalho em várias organizações internacionais.
Claro que a total uniformização ortográfica da língua entre os dois países é impossível, principalmente devido às diferenças fonéticas existentes, o que é natural e também acontece com as outras línguas internacionais, como é o caso do Inglês do Reino Unido e dos Estados Unidos e do Espanhol de Espanha e de todos os países hispano-falantes, que também têm uma única ortografia, embora com possíveis variantes para darem conta das diferenças existentes. Logo, não estamos a falar do léxico, da semântica ou significado das palavras, nem da morfossintaxe (construção das frases), mas sim e apenas da ortografia.
Então, a questão central, mais do que «O que muda com este novo Acordo Ortográfico?», é «Por que muda?», como eu explico aos estudantes. Comecemos, então, com a queda das consoantes mudas, em que a regra do novo Acordo Ortográfico é: «o que se pronuncia escreve-se, logo o que não se pronuncia não se escreve». Posto isto, o c cai em ação, ato, ata, ativo e atividade, mas não em ficção, dicção, secção. O c também não cai em contacto, ao contrário do Brasil, onde não é pronunciado e é escrito contato. Cai o p em adotar e adoção, mas não em adaptar e adaptação. O p também cai em receção, exceção e excecional, mas não cai em corrupção nem em interruptor, por exemplo. Como existem palavras em que algumas consoantes ainda são pronunciadas por alguns falantes mais conservadores, o Acordo contempla a possibilidade de dupla grafia nesses casos, como sector e setor, característica e caraterística. Contudo, sabemos que a tendência é a pronúncia destas consoantes desaparecer e, assim, com o passar do tempo, desaparecerem também na escrita. Logo, a grafia dupla acabará por deixar de existir.
No que se refere à questão da acentuação, a queda dos acentos nas palavras graves corresponde à necessidade de uniformização da regra da acentuação gráfica em Português. Ou seja, segundo esta regra, as palavras graves não recebem acento gráfico porque seguem a regra: são acentuadas na penúltima sílaba, a contar do fim. Por exemplo, a palavra a-ma-re-lo tem o seu acento fonético no –e– (vogal tónica) e não precisa de acento gráfico porque –re– é a penúltima sílaba, logo é uma palavra grave. Ora, com o novo Acordo Ortográfico, a queda dos acentos em polo por pólo, pelo por pêlo, pera por pêra e para por pára acontece por uniformização da regra do acento em Português. Porém, é aqui que reside uma das maiores oposições e resistências ao Acordo Ortográfico, visto que pelo (nome) passa a escrever-se como pelo (preposição) e para (forma do verbo parar) passa a escrever-se como para (preposição).
Neste último caso, o acento da palavra cai, mas a diferença fonética entre a vogal aberta (á), na forma verbal, e a semifechada (a), na preposição, continua a existir, diferenciando as palavras na oralidade. Na escrita, distinguem-se pelo contexto, tal como acontece com as palavras homógrafas, mas não homófonas, molho/molho e forma/forma, que já não têm o acento circunflexo (por serem palavras graves), indicativo da vogal semifechada (ô) por oposição à vogal aberta (ó).
Por falar em palavras homógrafas, mas não homófonas, temos ainda o exemplo de cor e cor, em que o acento circunflexo também já não existia para distinguir a vogal semifechada da vogal aberta. No caso destas palavras, embora tenham apenas uma sílaba, terminam por consoante, sendo formas excecionais na Língua Portuguesa, por isso, funcionam como palavras graves, ou seja, como se tivessem uma vogal final. É por isso que a palavra a-çú-car funciona como palavra esdrúxula, tendo acento, enquanto a-çu-ca-rei-ro é uma palavra grave. No caso de he-rói e he-roi-co, como podemos ver, o acento cai na palavra grave, ou seja, quando a penúltima sílaba é acentuada, mantendo-se na palavra aguda. Da mesma forma, joi-a e boi-a perdem o acento, tal como já acontecia em com-boi-o. No que se refere às formas verbais le-em, ve-em, de-em, cre-em, o acento cai porque também se trata de palavras graves, assim como vo-o que já tinha perdido o acento. Ao contrário das formas tem/têm do verbo ter e vem/vêm do verbo vir, que apresentam apenas uma sílaba, mantendo a distinção gráfica.
Quanto a outras formas verbais, como é o caso da distinção entre o pretérito prefeito e o presente dos verbos terminados em -ar, por exemplo falar, o acento do nós falámos no passado, para distinguir do tempo presente (nós falamos), é facultativo. Isto acontece porque falamos é uma palavra grave, mas, na escrita, em algumas frases, por exemplo sem marcadores temporais como «ontem», «a semana passada», «há um mês/ano», pode ser necessário distinguir a forma do presente da do passado (quando o contexto não permite diferenciá-las). Podemos usar sempre o acento, tal como em ele pôde (pretérito perfeito), para distinguir de ele pode (forma do presente do indicativo). Neste caso, o acento é obrigatório, no novo Acordo Ortográfico. É verdade que, nestes casos, teria sido melhor conservar o acento obrigatório nos dois casos, como exceção à regra, ou torná-los facultativos, em vez de um ser facultativo e o outro obrigatório. Pois, na prática, funcionam como exceção à regra. Relativamente ao verbo pôr, este mantém o acento, nunca se confundindo com a preposição por.
Para terminar, falamos da questão da hifenização, ou seja, o uso do hífen. O novo Acordo Ortográfico, ao contrário do que muitos pensam, simplifica as regras da hifenização. Podemos sistematizá-las do seguinte modo: palavras que denominam plantas e animais têm sempre hífen, como cana-de-açúcar e melro-preto; quando uma das formas que compõe a palavra termina e a outra começa com o mesmo som, vogal ou consoante, o hífen mantém-se, por exemplo micro-ondas, anti-inflamatório e super-resistente; quando são sons diferentes, juntam-se sem hífen, como em contrarrelógio e minissaia, duplicando a consoante r e s por questões fonéticas, porque fica no meio da palavra; quando a forma inicial é acentuada, por exemplo pré-escolar e pós-graduação, mantém-se o hífen; este também se mantém nas palavras com ex-, ex-mulher, ex-professor. Costumo dizer aos alunos, a brincar – para os ajudar a assimilar a regra –, que os ex- nunca se juntam (embora haja exceções, como em tudo na vida).
Haveria muito mais a dizer e questões a esclarecer, mas ficam aqui algumas considerações importantes para ajudar a compreender as mudanças do novo Acordo Ortográfico. Quando dou aulas de Português aos estudantes do curso de Educação Básica, que vão ser professores do Primeiro Ciclo, e dado que o uso das novas regras da ortografia portuguesa são obrigatórias no Ensino, digo-lhes sempre para agradecerem ao Acordo porque é muito difícil uma criança, quando está a escrever, compreender (sim, porque é fundamental compreender para aprender) porque é que se escreve c e p em determinadas palavras, quando os sons não são pronunciados, bem como ensinar várias exceções à regra de acentuação das palavras graves pré-acordo e tantas regras de hifenização.
Não se trata de uma questão de facilitismo, pois basta pensar na palavra prática, que em Português já não tinha c. Enquanto estudante, eu sempre duvidava se esta palavra se escrevia com c ou não antes do t, porque outras palavras tinham, na ortografia, um c que também não era pronunciado, como actuação que passa a ser escrita atuação. Como podem ver, já tínhamos pelo menos uma palavra em Português que escrevíamos sem a consoante muda, conservada no Espanhol, práctica, e em Inglês, practice, onde é pronunciada (no Francês pratique).
Quem quiser começar a usar o novo Acordo (o que recomendo, sobretudo a pais de crianças pequenas para as poderem acompanhar no seu processo de escolarização), no computador, basta selecionar, num documento Word, em propriedades, ortografia pós-Acordo e, assim, através desta ferramenta, habituar-se à nova imagem das palavras na escrita. Como em tudo na vida, é preciso mudar e o mais difícil é começar e enfrentar o desconhecido. Resistir às mudanças é pior e um dia somos mesmo obrigados a mudar.
Artigo da linguista e professora universitária portuguesa Naidea Nunes Nunes, transcrito, com devida vénia, do jornal Funchal Notíci@s, com a data de 29 de novembro de 2018