« (...) Se tomarmos em conta que em Moçambique há uma situação de contacto de línguas (Português e línguas bantu), a partir da qual há integração de elementos linguísticos de uma língua noutra, podemos considerar que este acordo trará algumas vantagens para Moçambique no que diz respeito aos empréstimos lexicais das línguas bantu no Português. (...)»
No quadro do actual debate público moçambicano tem sido recorrente discutir-se acerca do novo acordo ortográfico da língua portuguesa, embora até então não ratificado por Moçambique e Angola. Como forma de compreender os contornos desse debate, o jornal O Povo entrevistou Marta Sitoe que é formada em ensino de Português pela Universidade Eduardo Mondlane. É Docente de Português e é membro da equipa de investigadores da Cátedra de Português Língua Segunda e Estrangeira da UEM.
Como docente da língua portuguesa, partilhou, em forma da entrevista, o seu sentimento em relação a necessidade e ou importância da adesão ao novo acordo ortográfico.
Crescêncio Manhique (CM): O novo acordo ortográfico (acordo ortográfico de 1990) da Língua Portuguesa tem gerado muita polémica entre os seus opositores e os seus defensores. Como docente de Português de que maneira olha para o novo acordo ortográfico?
Marta Sitoe (MS): Uma vez que introduz esta questão fazendo referência a opositores e defensores do novo ortográfico, antes de dar a devida resposta, vou dizer de que lado me encontro nessa polémica. Embora eu considere legítimo que o acordo seja questionado nomeadamente no que diz respeito à sua pertinência, nada tenho contra a sua implementação. O acordo ortográfico de 1990 não vai interferir no conhecimento básico que temos das palavras – o conhecimento do seu significado indissociável da sua forma fónica. Por exemplo, o facto de passarmos a escrever ótimo, contraindicação e janeiro em vez de óptimo, contra-indicação, Janeiro não terá nenhuma interferência na forma como pronunciamos essas palavras nem vai mudar o seu significado. Esse conhecimento, que o temos independentemente de sabermos escrever, não será afectado pelo novo acordo ortográfico. Eu, enquanto professora de Português, vejo este acordo como uma simplificação da ortografia da língua portuguesa, o que, por sua vez, poderá facilitar o ensino e a aprendizagem da escrita e da leitura. A regra segundo a qual «o que não se pronuncia não se escreve», que envolve as consoantes mudas, é um bom exemplo disso.
(CM): Que implicações o novo acordo ortográfico acarretará ao nosso país, cujos dados estatísticos demonstram que somente 15% da população tem o português como língua materna?
(MS): É difícil estabelecer uma relação entre a situação de aquisição do português em Moçambique e o novo acordo ortográfico. Devemos não perder de vista que ortografia – escrita correcta das palavras de uma língua – é uma convenção cultural e política para a comunicação verbal escrita. A escrita é geralmente aprendida através da instrução formal por todos os usuários da língua independentemente do contexto em que a adquiriram. A partir daqui, pode-se depreender que, independentemente de o sistema ortográfico ser resultante do acordo de 1945 ou do de 1990, a sua aprendizagem será efectuada na escola quer por aqueles para quem o Português é língua materna quer por aqueles para quem é língua segunda. Com isto quero dizer que, o facto de apenas 15% da população ter o português como língua materna não constitui problema para a implementação do novo acordo ortográfico.
(CM): Em termos concretos, que vantagens o novo acordo ortográfico trará para o nosso país?
(MS): No âmbito do novo acordo ortográfico, [em 2010] foi criado o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) para apoiar a sua implementação. Esta ferramenta fornece informações sobre as características formais das palavras do português, tais como a ortografia, a flexão e as relações morfológicas entre palavras. Ainda que tenha sido desenvolvido tomando como referência as palavras do português europeu, também inclui palavras de outras variedades do português, entre as quais, da variedade moçambicana. Se tomarmos em conta que em Moçambique há uma situação de contacto de línguas (português e línguas bantu), a partir da qual há integração de elementos linguísticos de uma língua noutra, podemos considerar que este acordo trará algumas vantagens para Moçambique no que diz respeito aos empréstimos lexicais das línguas bantu no português. Uma vez que a ortografia desses empréstimos é estranha ao português, eles têm de passar por um processo de adaptação ortográfica para que efectivamente figurem no VOP como palavras da língua portuguesa. A principal vantagem disso, a meu ver, reside no facto de esses empréstimos, muitas vezes usados para designar realidades culturais típicas, passarem a adquirir um estatuto “global”, ou seja, tendo a sua ortografia adaptada à língua portuguesa, eles passam a integrar o acervo lexical desta língua, podendo ser escritas e lidas sem muitas dificuldades por todos os seus usuários.
(CM): Em todo o período histórico, a língua portuguesa conheceu algumas transformações que resultaram do seu contacto com línguas faladas em alguns países da CPLP. O novo acordo ortográfico não servirá de retrocesso comparativamente a outras línguas como o inglês e o francês, tendo em conta que o inglês, em particular, tem muitas pronúncias, mas não são poucos os estudiosos que consideram que não precisa, mesmo assim, de unidade ortográfica?
(MS): Acho que um acordo ortográfico se faz necessário onde existe uma divergência ortográfica entre comunidades que têm uma língua oficial em comum. No caso, da língua portuguesa, o facto de existirem duas normas ortográficas oficiais divergentes, uma no Brasil e outra nos restantes países de língua oficial portuguesa, suscitou a necessidade da criação de uma ortografia unificada para esta língua. Com isto, o que pretendo dizer é que não é a existência de pronúncias diferentes que conduz a negociações sobre a unificação ortográfica. Aliás, o facto de o novo acordo ortográfico ter privilegiado o critério fonético (pronúncia) tornou diferentes palavras que eram escritas da mesma maneira no Brasil e em Portugal como por exemplo, decepcionar. Obedecendo à regra «o que não se pronuncia não se escreve», a consoante p deixa de ser escrita em Portugal, mas mantém-se no Brasil.
(CM): A partir da sua resposta, conseguimos perceber que, no novo acordo ortográfico ainda persistem divergências ortográficas, podemos, por isso, considerar este acordo um fracasso?
(MS): O acordo ortográfico de 1990 foi aprovado com a finalidade de unificar a ortografia do português, e um esforço foi feito no sentido de se alcançar este objectivo. O facto de existirem casos de dupla grafia, a meu ver não constitui um fracasso, mas uma lacuna deste acordo, decorrente do facto de se ter privilegiado o critério fonético (a pronúncia).
(CM): Há correntes de opiniões segundo as quais o Brasil estará a fomentar a implementação do novo acordo ortográfico da língua portuguesa visto que nesse processo de ratificação tem uma ligeira vantagem comparativamente a outros países. Que comentário lhe apraz tecer à volta dessa percepção.
(MS): Afirmações dessa natureza são feitas pelos opositores do novo acordo ortográfico, que alegam que a sua adopção visa facilitar a penetração das editoras brasileiras nos países africanos de língua portuguesa bem como que o mesmo conduzirá ao “abrasileiramento” da escrita da vertente portuguesa. Bem, eu vou manter-me neutra em relação a estas alegações. Em todo o caso, tratando-se de um acordo, ambas as partes tiveram de ceder, abolindo certos aspectos da grafia que vinham usando. Entretanto, se quantificarmos as modificações feitas pelos dois países, veremos que há uma desproporção numérica. São modificadas 1,6% das palavras do português europeu e 0,5% das palavras do português do Brasil. Acho que estes números comunicam alguma coisa.
(CM): Como professora de Português, gostaríamos também de ouvir a sua opinião em relação ao ensino desta língua. Hoje tornou-se comum depararmos com jovens, que mesmo tendo concluído o ensino médio, apresentam imensas dificuldades no uso do português a nível da oralidade e da escrita. O que isto significa?
(MS) Sem dúvidas, essas dificuldades são um indicador da existência de lacunas na sua formação, que não têm exclusivamente a ver com a disciplina de Português. Embora eu reconheça que o professor de Português deve assumir protagonismo no desenvolvimento de habilidades linguísticas nos seus alunos, acho que todos os intervenientes no processo educativo têm a obrigação de colaborar nesse sentido. Nada impede, por exemplo, que o professor de uma disciplina das Ciências Sociais, a partir dos textos que usa, promova o desenvolvimento da leitura e escrita. Fazendo isso, o professor estará, de certa forma, a criar condições para que os seus alunos tenham bons resultados na sua disciplina.
(CM): Então, o que está a falhar?
(MS) Bem, acho que há vários factores que concorrem para esse insucesso. No entanto, vou fazer referência a um, com o qual tenho mais contacto pelo facto de ser professora. Ensinar é uma actividade dinâmica, que é muitas vezes afectada por questões ligadas à conjuntura da sociedade. Todas as mudanças que ocorrem na sociedade afectam o sistema educativo, o que significa que os intervenientes nesse processo devem estar constantemente a reinventar-se para se adaptarem a novas realidades. Para isso, é indispensável uma formação adequada e contínua de todos os fazedores do sistema educativo, particularmente os professores. Enquanto professores, precisamos não apenas de ter o domínio científico dos conteúdos que leccionamos, mas também de ter uma visão mais ampla da relevância do que ensinamos para os nossos alunos como pessoas inseridas na sociedade em que estamos e no mundo.
Breve historial do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
O Acordo Ortográfico foi assinado em Lisboa a 16 de Dezembro de 1990 e deveria ter entrado em vigor em 1994, mas exigia que todos os países ratificassem o documento até essa data. Desde então, vieram dois Protocolos Modificativos do Acordo: o primeiro, de 1998, apenas retirou a data inicial de entrada em vigor, que já havia expirado. O segundo protocolo, assinado em 2004, passou a aceitar como suficiente a ratificação por três países para o texto vigorar, além de incluir Timor-Leste no Acordo Ortográfico. Ambos os protocolos foram aprovados por todos os países lusófonos.
O Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe foram os primeiros países a ratificarem o documento de união da ortografia da língua portuguesa escrita. Portugal ratificou-o em 2008; Guiné-Bissau e Timor-Leste ratificaram-no em 2009.
Angola e Moçambique são os países da CPLP que ainda não ratificaram a adesão ao Acordo, que já vigora legalmente em Portugal, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
N.E. – Sobre o aportuguesamento da palavra bantu, vide Banto/a, bantos/as ‘vs.’ “bantu” (invariável) + O plural de banto.
N. E. (11/06/2020) – Na sequência de um esclarecimento (comunicação pessoal) da organização do VOC, substituiu-se o texto inicialmente transcrito, que provinha da edição de 6 de junho de 2020 do jornal moçambicano Preto e Branco pela versão original, que saiu em 22 de agosto de 2016 no jornal O Povo, o qual terá deixado de se publicar. Pareceu, portanto, de justiça reproduzir a entrevista tal como apareceu em O Povo, com a devida identificação do entrevistador, Crescência Manhique (CM). Fica também disponível aqui a referida edição de 22 de agosto de 2020 (edição 29, ano 1) de O Povo.
Entrevista com a linguista Marta Sitoe, que o jornal moçambicano O Povo incluiu na sua edição de 22 de agosto de 2016 e que o jornal Preto e Branco, também de Moçambique, republicou em 6 de junho de 2020.